A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou na tarde desta segunda-feira (7) em São Paulo seu quarto relatório parcial de pesquisas, este dedicado à identificação de centros clandestinos utilizados pela ditadura (1964-1985) para interrogar, torturar, matar, desfigurar e ocultar cadáveres de opositores, com anuência de militares de alto escalão, inclusive no Palácio do Planalto.
O documento lista sete imóveis utilizados pelo regime nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Itapevi (SP), Marabá (PA) e Petrópolis (RJ), com endereços, cadeias de comando e nomes das vítimas que sofreram graves violações de direitos humanos em cada local. O relatório sugere ainda a existência de pelo menos outros dez espaços semelhantes, espalhados pelos estados de Paraná, Bahia, Sergipe, Goiás, Brasília, Pernambuco e Ceará.
“Mais uma vez demonstramos que essa rede de centros clandestinos era parte de uma estratégia adotada pelo Estado brasileiro e pelas Forças Armadas para eliminação de opositores”, avalia o jurista Pedro Dallari, coordenador da CNV, ressaltando que os centros clandestinos foram resultado de uma 'política de Estado' – e não de supostos 'excessos' que fugiam ao conhecimento do governo. “Havia uma política de Estado responsável pela estruturação de uma rede de centros clandestinos para graves violações aos direitos humanos.”
“Não eram estruturas autônomas, não eram subterrâneos e não eram produtos de milícias ou grupos paramilitares”, reforça a historiadora e assessora da CNV Heloísa Starling, que conduz o estudo sobre centros clandestinos juntamente com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Em função da natureza dos vínculos de comando, da abrangência geográfica e da atuação regular, esses centros clandestinos eram parte da estrutura de inteligência e repressão do regime. E obedeciam ao alto comando das Forças Armadas.”
De acordo com Heloísa, centros clandestinos eram casas, apartamentos, sítios ou fazendas, em geral de propriedade privada, cedidos ao regime para funcionar como aparelhos de repressão. “Não se confundem com quartéis, instituições militares ou delegacias de polícia, que podemos chamar de 'centros convencionais' de violações de direitos”, diz a pesquisadora. Os sete centros, informa, operaram entre 1970 e 1975, nos governos de Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
A assessora da CNV explica que os centros clandestinos foram criados com a finalidade de abrigar procedimentos considerados “estratégicos” pelos militares então no poder – e que eram proibidos até mesmo pelas leis de exceção que imperavam no país. Além da tortura, os imóveis identificados pela pesquisa também foram responsáveis pelo desaparecimento de cadáveres. “Isso incluía eliminar digitais e arcadas dentárias, e eliminar os próprios corpos através da queima junto com pneus, esquartejamento e lançamento no mar”, enumera.
Os centros, continua Heloísa, também cumpriam um papel estratégico para sustentar a imagem “democrática” que a ditadura ostentou perante setores da opinião pública brasileira. O regime utilizou os imóveis clandestinos para evitar que determinados opositores – “que deveriam ser eliminados” – ingressassem nos caminhos da Justiça formal. Assim, o governo impedia que fossem presos, julgados e processados pelos tribunais do país – que, apesar de controlados pelos ditadores, ainda previam certas garantias ao réu. Por exemplo, a vida.
“Contra determinados opositores, a ditadura não poderia utilizar os procedimentos da própria 'legalidade de exceção' que ela havia construído. E é nesse sentido que ela precisou criar essa estrutura clandestina. Havia presos que ela não poderia assumir. Então, criou uma série de práticas para ferir a 'legalidade de exceção' que ela mesmo tinha criado”, explica a historiadora. “Essa 'legalidade' é ferida nos desaparecimentos, na política de extermínio e no uso da tortura como técnica de interrogatório. A ditadura elaborou mecanismos para utilizar todas as vezes em que os militares considerassem insuficientes os procedimentos legais.”
Os centros clandestinos enumerados pelo estudo preliminar da CNV foram responsáveis pela tortura, morte ou desaparecimento de pelo menos 45 pessoas. Dos sete, o imóvel mais sangrento era conhecido como Casa Azul, e se localizava no km 1 da rodovia Transamazônica, no município de Marabá (PA). Subordinada ao Centro de Informações do Exército (CIE), na Casa Azul morreram não menos que 24 pessoas – entre elas, combatentes da Guerrilha do Araguaia. “Ninguém sobreviveu lá dentro”, afirma Heloísa. Um dos torturadores do centro paraense era Sebastião de Moura, conhecido como Major Curió.
“A pesquisa da CNV está levantando uma questão nova e importante sobre a ditadura”, sublinha a historiadora. “Se comparada às ditaduras argentina ou chilena, a ditadura brasileira foi extremamente seletiva na repressão.” De acordo com Heloísa, essa seletividade casou perfeitamente com a existência dos centros clandestinos. Com eles, evitava-se levar aos quartéis, delegacias e à Justiça quem já estava marcado para morrer. “O regime pensou as duas coisas, com uma estratégia dupla”, afirma. “Isso possibilitou poucos momentos de repressão de massa.”
Nem todos os centros clandestinos podem ser considerados “casas da morte”, como a Casa Azul de Marabá (PA) ou a Casa de Petrópolis (RJ). Isso porque, segundo Heloísa Starling, alguns não eram utilizados para torturas e desaparecimentos de opositores. “Eles funcionavam para cooptação e monitoramento de militantes que eram transformados em agentes infiltrados”, revela, citando como exemplo um imóvel localizado no bairro do Ipiranga, em São Paulo. “Neste centro, os infiltrados assinavam contrato, recebiam salário e entregavam seus relatórios.” Outras casas, afirma a assessora da CNV, serviam de alojamento temporários para repressores envolvidos em operações clandestinas.
Fonte: Rede Brasil Atual