Para doutora em Meteorologia da USP, eleições são oportunidade para pautar a necessidade de adaptar cidades aos efeitos das mudanças climáticas
Problema alertado há décadas pelos cientistas, a crise ambiental está praticamente no nível que costuma ser conhecido como “ponto de não retorno”. Essa situação coloca, em patamar de urgência extrema, a necessidade de o poder público, o empresariado de todos os setores e a sociedade em geral se unirem para estancar esse processo em nível global. Para isso, é preciso rever as formas de produção e de consumo; frear o desmatamento; investir na reconstituição de florestas e aumentar a resiliência das cidades, além de proteger as populações, sobretudo as mais vulneráveis.
“Nós, pesquisadores, sentimos certa impotência em relação à crise climática, porque desde o final da década de 1980 os cientistas do clima vêm alertando sobre tendências de aquecimento global e mudanças climáticas”, explica Ana Maria Pereira Nunes, doutora em Meteorologia pelo IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP e pesquisadora das mudanças climáticas na Região Metropolitana de São Paulo.
No Brasil, soma-se a esse contexto mais geral o fato de que, especialmente nos anos mais recentes, sob o comando de Jair Bolsonaro (PL), o país sofreu um verdadeiro desmonte nas políticas ambientais e nas estruturas de fiscalização, o que aumentou o desmatamento, as queimadas e o poder do agronegócio e dos garimpeiros, além da invasão de terras indígenas — que historicamente são as mais bem preservadas.
As dificuldades para se enfrentar a crise climática são muitas e o tempo é curto, mas a questão é inescapável. Não por acaso, o tema está presente na pauta das eleições municipais deste ano, talvez mais do que nunca. Iniciativas como bancadas climáticas de vereadores pelo Brasil e plataformas que indicam candidaturas comprometidas com a questão apontam para uma maior preocupação com o tema.
Por outro lado, também se proliferam candidaturas umbilicalmente ligadas à extrema-direita, que costuma tratar o tema pela chave do negacionismo e como “mimimi ambientalista”. Por isso, também é preciso que os eleitores estejam atentos e façam valer o seu direito de viver sob condições ambientais dignas.
Nesta entrevista ao Portal Vermelho, Ana Maria Pereira Nunes fala sobre o tema e sobre o que pode ser feito, especialmente no âmbito municipal, para enfrentar a crise atual.
Sem espaço para o negacionismo
“Nós, pesquisadores, sentimos uma certa impotência em relação à crise climática, porque desde o final da década de 1980 os cientistas do clima vêm alertando sobre tendências de aquecimento global e mudanças climáticas. E, ao invés de vermos as ações necessárias sendo tomadas, vemos o negacionismo desde aquela época e até os dias de hoje. No entanto, hoje não há mais espaço para negacionismo: as mudanças climáticas já chegaram e atualmente a própria população está vendo isso, principalmente em relação à percepção de que os eventos extremos vêm aumentando”.
Como ocorre o aquecimento global
“A Terra constantemente busca equilíbrio ao redistribuir o calor recebido da radiação solar. Fenômenos naturais, como nuvens, frentes frias e furacões são essenciais para essa redistribuição. A radiação solar que a Terra recebe durante o dia é parcialmente reemitida à noite, mas alguns gases da atmosfera aprisionam parte dessa energia, criando o famoso efeito estufa. Muitas vezes ele é tratado como vilão da situação climática atual, mas esse efeito é natural e vital, pois mantém as temperaturas habitáveis na Terra. Porém, o aumento dos gases do efeito estufa desde a Revolução Industrial tem intensificado o aprisionamento da radiação no sistema terrestre, aumentando as temperaturas médias a nível global.
Com mais calor aprisionado, a redistribuição de energia está se tornando mais vigorosa e resultando em eventos climáticos extremos: ondas de calor cada vez mais frequentes, surgimento de zonas áridas (raros registros de chuva), tempestades vigorosas, chuvas torrenciais, secas prolongadas, etc.
Além disso, temos a variabilidade climática natural, que nada mais é do que os ciclos com períodos conhecidos, que ocorrem em diversas escalas. Por exemplo, os famosos El Niño/La Niña. O que temos observado é uma soma de efeitos, na qual o aquecimento global intensifica os efeitos naturais”.
O avanço da fronteira agrícola
“O avanço da fronteira agrícola via desmatamento e queimadas acelera as mudanças climáticas. A Amazônia é a grande responsável pelo suporte de umidade para o Sudeste do país, região com maior densidade populacional e maior economia. A floresta recebe a umidade do oceano, utiliza para a sua própria precipitação e então ‘recicla’ essa umidade de volta para a atmosfera através da evapotranspiração (evaporação das superfícies somada à transpiração das plantas). Essa umidade reciclada pela floresta é distribuída para outras regiões através de corredores atmosféricos de umidade conhecidos como ‘rios voadores’.
Quando mudamos a cobertura e o uso do solo, estamos influenciando diretamente nesta dinâmica, além de outras implicações no sequestro de carbono, na qualidade do ar, no aumento das temperaturas e das emissões dos gases de efeito estufa e etc. Quando a vegetação original é substituída pela agricultura ou pecuária, ainda devemos considerar outros agravantes como a emissão dos gases do efeito estufa relacionados ao uso de fertilizantes, emissões de metano do gado, empobrecimento do solo através das culturas permanentes e perda de capacidade de armazenamento de água”.
Reação em cadeia
“É fácil perceber como tudo isso impacta na sociedade, causando uma reação em cadeia no sistema público de saúde, infraestrutura e economia. Temperaturas mais altas proliferam mosquitos transmissores de doenças causando epidemias (dengue, por exemplo), altos índices de poluição e baixa umidade relativa do ar elevam casos de internação por doenças respiratórias, milhares de mortes por ano devido às ondas de calor, crises hídricas e de energia, elevado número de mortes, perdas econômicas e migração em massa devido às enchentes e inundações causadas por tempestades vigorosas e chuvas torrenciais, colapso dos ecossistemas com perda da biodiversidade, extinção de espécies…
A lista de consequências no curto, médio e longo prazo é praticamente interminável, destacando ainda o agravamento de crises sociais, uma vez que dada a desigualdade social existem populações mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas do que outras”.
Dificuldade em avançar nas políticas de mitigação
“A dificuldade em se avançar nas políticas de mitigação da crise climática envolve muitos aspectos, mas vale destacar alguns pontos-chave, tais como interesses econômicos e políticos, que geram descontinuidade de políticas públicas, além do baixo investimento em pesquisa, ciência e inovação no país. Isso tem feito com que o Brasil dependa fortemente de setores como o agronegócio e a mineração, que entram em conflito direto com políticas ambientais mais restritivas.
Aliado a isso, enquanto cientistas, temos lutado contra as fake news relacionadas ao clima, que infelizmente são um obstáculo significativo para a conscientização e o avanço de ações climáticas. Elas distorcem dados científicos, minimizam os efeitos das mudanças climáticas ou até negam a existência do fenômeno, muitas vezes impulsionadas por interesses econômicos e políticos. Essas desinformações confundem o público, criando dúvidas sobre a legitimidade das políticas climáticas e minando a urgência das medidas necessárias. Redes sociais amplificam esse conteúdo, polarizando o debate e retardando ações que poderiam mitigar impactos climáticos e adaptar cidades e ecossistemas”.
Desafios colocados para as administrações municipais
“As administrações municipais precisam, com urgência, planejar a adaptação das cidades para os efeitos das mudanças climáticas, como ondas de calor, inundações e secas, enquanto enfrentam a resistência popular gerada pela desinformação. Além disso, o Brasil enfrenta barreiras estruturais e políticas, como a falta de recursos e a ausência de integração entre políticas federais, estaduais e municipais. Isso torna difícil a implementação de medidas abrangentes.
Também precisamos escolher bons gestores, que considerem a urgência da questão climática. Tomemos como exemplo o ocorrido no Rio Grande do Sul em maio: não adianta deixar de investir previamente na área ambiental e ter que tratar o problema depois. Devemos optar por gestores com uma boa visão sobre isso, mesmo porque algumas perdas são irreparáveis, especialmente a perda de vidas”.
Planos para a crise
“Diante da inevitabilidade dos fenômenos climáticos extremos cada vez mais frequentes, devemos exigir que os municípios estudem e implementem com urgência planos de contingência/emergência em caso de desastres, independentemente do viés partidário que esteja no poder.
Outra urgência é a destinação correta dos resíduos sólidos, políticas de incentivo à reciclagem e valorização dos coletores de materiais recicláveis, além do incentivo e orientação a práticas que gerem menos resíduos. Não podemos continuar produzindo lixo para sempre, ainda mais neste ritmo. Também é preciso melhorar a qualidade de vida da população, especialmente a mais vulnerável, com moradias dignas em áreas seguras; melhorar e ampliação o transporte público, de maneira a incentivar as pessoas a utilizarem menos carro.
Igualmente importante é a implementação e o incentivo ao uso de energias limpas e renováveis, o planejamento urbano com aumento de áreas verdes, hortas comunitárias, parques e áreas preservadas. Outro grande desafio é a criação de mecanismos de financiamento para esses projetos, considerando que muitas prefeituras possuem orçamentos limitados. Os gestores municipais precisam também lidar com a falta de apoio técnico para a elaboração de planos de ação climática eficientes e a pressão para conciliar desenvolvimento urbano com sustentabilidade”.