Jornada de trabalho das 9h às 21h, seis dias por semana, reaparece no Vale do Silício, principalmente em empresas de Inteligência Artificial
A rotina de trabalho deve começar às nove da manhã, terminar somente às nove da noite e repetir isso seis dias por semana — assim é conhecida a “Escala 996”. Na China, o modelo virou símbolo de exploração, ganhou o apelido de “escravidão moderna” e foi proibido em 2021 depois de casos de mortes e problemas graves de saúde ligados ao excesso de trabalho.
Agora, essa cultura está voltando a ganhar força, mas longe da Ásia. Reportagem da revista Wired mostra que startups de Inteligência Artificial no Vale do Silício, nos Estados Unidos, têm adotado jornadas parecidas, ainda que sem usar o nome “996” abertamente. Em algumas empresas, a exigência aparece já na descrição da vaga, junto com “benefícios” como café da manhã, almoço e jantar servidos todos os dias no escritório — inclusive no sábado.
A ideia, segundo executivos, é aumentar a competitividade entre rivais nacionais e também com a própria China, que se consolidou como referência em produtividade agressiva no setor.
A escala exige 72 horas semanais e, na China, chegou a ser praticada por gigantes como Alibaba e Tencent. Foi derrubada pela Suprema Corte do país, que reafirmou que o máximo permitido por lei são 44 horas semanais, com horas extras controladas. A decisão veio depois de uma série de denúncias, como a de um programador de 25 anos que morreu de hemorragia cerebral atribuída ao excesso de trabalho.
Nos Estados Unidos, empresas como a Rilla dizem adotar o regime de forma “voluntária”, segundo a própria startup, e quase todos os 80 funcionários toparam entrar no esquema. Nas vagas divulgadas, a empresa explicitou o cronograma exaustivo, e afirmou que quem não estiver “animado”, não deveria se inscrever.
Para Will Gao, chefe de crescimento da empresa, a prática reflete uma mentalidade comum entre jovens empreendedores. “Existe uma subcultura muito forte e crescente de pessoas, especialmente na minha geração — a Geração Z —, que cresceram ouvindo histórias de Steve Jobs e Bill Gates, empreendedores que dedicaram suas vidas a construir empresas transformadoras. Kobe Bryant dedicou todas as suas horas acordado ao basquete, e não acho que haja muita gente dizendo que Kobe Bryant não deveria ter se esforçado tanto”, disse à Wired.
Trabalho exaustivo
Outras empresas oferecem bônus de 25% no salário e participação societária para quem aceitar, mas nem todos os funcionários concordam em participar. Há quem recuse, alegando que a cobrança é velada e cria um clima de competição extrema. Para especialistas em direito trabalhista, companhias que promovem a 996 estão “totalmente em desacordo” com as leis dos EUA, embora haja quem acredite que o modelo deve continuar crescendo.
A tendência preocupa especialistas em saúde e direito trabalhista, já que a legislação americana também impõe limites para horas extras que variam de estado para estado. Além do risco de processos, a volta da 996 reacende o debate sobre até onde vai o esforço legítimo e onde começa a exaustão que adoece.