Ao comprar a racionalidade hegemônica, indivíduo atua no sentido contrário dos próprios interesses e é incapaz de fazer reflexões
“Pedi à nossa equipe aqui que ajude a estruturar ferramentas e canais para que aquelas pessoas que queiram fazer doações possam fazer essas doações também ajudando o comércio local, que está impactado. Na verdade, quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao estado, há um receio sobre o impacto que isso terá no comércio local. O reerguimento desse comércio fica dificultado na medida em que você tem uma série de itens que estão vindo de outros lugares do país”, afirmou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, na quarta-feira (15/05).
A declaração de Leite despertou uma onda de críticas, tendo em vista a situação do estado, que permaneceu mais de 15 dias embaixo d’água, em um cenário de destruição que fez com que os gaúchos perdessem absolutamente tudo. Até o momento, as enchentes que inundaram o Rio Grande do Sul fizeram 155 vítimas fatais, além de 94 desaparecidos e mais de dois milhões de atingidos.
“A fala do governador do Rio Grande do Sul é uma fala assustada: diante da solidariedade que entra dentro dessa lógica contra-hegemônica, que não é mais o egoísmo que está dando as cartas, é a solidariedade. Ele diz pare de fazer doações porque vai prejudicar os empresários, que vai prejudicar o comércio”, comenta o juiz de Direito do TJRJ e escritor, Rubens Casara, autor do livro A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação.
Casara foi um dos entrevistados do programa TVGGN 20H, transmitido em 17/05. Ao longo da entrevista, ele explicou como se dá o processo de idiossubjetivação, que, segundo ele, formata pessoas para que aceitem um jogo de poder econômico e político contrário aos próprios interesses.
“O sujeito idiossubjetivo se torna incapaz de perceber que ele está atuando no sentido contrário aos seus interesses, aos interesses dos filhos, e não faltam exemplos de pessoas que cometem esse vício de pensamento muito mais próximo do vazio de pensamento do que de reflexão”, comenta Casara.
Exemplos
De acordo com o conceito da Grécia, idiota é aquele indivíduo que naturaliza o que deveria ser tido como inaceitável. Pode até ser que esta pessoa seja inteligente, porém ela se mostra incapaz de fazer reflexões.
“Já que hoje estamos no dia de luta contra homofobia, é aquele dirigente sindical homofóbico, aquele membro do movimento social racista, aquela pessoa que faz as coisas sempre a partir de cálculos simplórios e simplistas, visando lucro ou obtenção de vantagens pessoais”, explica o juiz.
Mais que benesses, esses indivíduos objetificam os demais, percebendo-os como oponentes a serem vencidos ou inimigos que devem ser destruídos.
Por isso, o autor explica que a motivação para escrever a obra foi entender o porquê de tanta gente achar natural convicções que seriam inaceitáveis até 10 anos atrás, ao ponto de elegermos até representantes desta barbárie como presidentes.
“É um fenômeno mundial que está intimamente ligado a uma mutação subjetiva gerada por aquilo que alguns autores têm chamado de racionalidade hegemônica, racionalidade neoliberal”, continua o juiz.
Para combater o processo de idiossubjetivação em andamento, o convidado sugere o resgate da ideia do inegociável. “Não se negocia com vidas, não se pode aproveitar de uma desgraça, de uma tragédia que é política, ecológica, ambiental para que isso venha a ser percebido pelo sujeito como oportunidade de levar uma vantagem.”