Uma das reclamações é que não há equipes suficientes para tocar projetos essenciais como Pix, real digital e Open Finance; movimento já afeta cronogramas
O desânimo dentro do Banco Central (BC) em relação a pleitos como reajuste salarial e plano de carreira está tão grande que técnicos e até servidores dos escalões mais altos passaram a tratar o assunto de forma aberta — e inédita — em todas as oportunidades públicas possíveis. Considerados parte da elite do funcionalismo, os servidores do BC tradicionalmente não costumam fazer reivindicações públicas, mas agora têm destacado o “desmonte” da instituição.
O mau humor não é de hoje. Há um desgaste com o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, desde o ano passado, quando a categoria fez a maior greve de sua história sem grandes vitórias. Agora, a avaliação é a de que a piora do ambiente de trabalho está tão grande — e contrastante com outras categorias, que têm promessas de bônus salariais e concursos —, que profissionais buscam alternativas para suas carreiras. A mudança de postura se dá porque há a percepção de que a situação “degringolou”.
Uma das reclamações é de que não há equipes suficientes para tocar os projetos considerados essenciais pelo Banco Central, como desenvolvimentos do Pix, o real digital e o Open Finance. O último concurso foi em 2013, e de lá para cá áreas foram reduzidas à metade.
As paralisações, inclusive, já começam a ter impacto em produtos e serviços da autoridade monetária, como o cronograma para as novas fases do Pix (que já foi adiado para 2024). A regulamentação do mercado de criptoativos também é uma das candidatas a andar a passos lentos, sem corpo funcional suficiente.
Alguns profissionais já têm buscado vagas no setor privado, alegando que “do outro lado da rua” está bem melhor para trabalhar. O setor de tecnologia, segundo relatos, é o que mais tem se adiantado ao movimento. A avaliação interna é a de que estão “indo de graça” para outras empresas privadas. Os pedidos para funcionários serem cedidos para o mercado ou para organismos internacionais estão ocorrendo “a quilo”.
Críticas até de diretores
De saída do cargo de diretor de fiscalização, Paulo Souza, que é servidor da autarquia, foi bastante enfático ontem sobre os problemas enfrentados pela categoria, em evento do cooperativismo hoje dentro da instituição. “O BC vem passando por uma crise institucional. Tivemos a maior greve da história. Em 25 anos de carreira, eu nunca vi… O BC sofreu um desmonte nos últimos 10 anos”.
Souza disse que a questão não é só salarial, mas de assimetria com outros órgãos e dentro do próprio BC, em que pessoas que não estão na área finalística ganham mais do quem está “na missão principal do banco”. Sem citar diretamente, o diretor está se referindo aos servidores da área de procuradoria, que recebem salários equivalentes aos de diretores, um dos ápices da carreira da autoridade monetária, logo quando chegam — situação que há tempos incomoda os servidores do BC.
“Os penduricalhos em outras categorias estão trazendo grande revolta interna. A categoria quer tratamento igualitário para continuar a entregar o melhor serviço”, disse Souza, sem mencionar o bônus de produtividade da Receita (a temperatura no BC voltou a aumentar justamente após o governo publicar um decreto para regulamentar o bônus de eficiência do Fisco, algo pleiteado também pelos servidores da autoridade monetária).
“Hoje, com o Pix, é preciso trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana. Não é possível que não tenha uma regulamentação mínima de sobreaviso”, completou o diretor.
Até na CPI da Americanas
Na sexta-feira (23), o diretor de regulação, Otávio Damaso, também fez coro sobre o “desmonte da instituição”, ressaltando que o corpo funcional do BC caiu pela metade nos últimos anos (e beira os 3 mil hoje, contra 7 mil no início da década passada). Os pares de organização do sistema financeiro e resolução, Renato Gomes, e de relacionamento, Mauricio Moura, também reconheceram a importância do movimento recentemente.
No mesmo evento de Souza, o chefe do departamento de supervisão de cooperativas e de instituições não bancárias (Desuc), Harold Espinola, também comentou sobre o assunto, ressaltando o profissionalismo do quadro de pessoal. “Há exemplos de entrega de toda a ordem em todas as demais áreas do BC e só para citar a mais famosa ultimamente: o Pix. Mas são inúmeras, diversas, algumas silenciosas, que as pessoas não percebem, outras ostensivas. Entretanto, como disse o Paulo, há mais de 10 anos não temos concurso e, consequentemente, reposição de quadros”.
“Então é importante quanto isso é a atenção ao resgate de uma adequada política de remuneração que seja coerente com as demais carreiras típicas de Estado. Isso é imprescindível para reter e atrair novos servidores. Não adianta ter concurso se não for atrativo, se a pessoa não fica. A recorrente e crescente deterioração dessas condições está fragilizando e pondo em risco cada vez mais a nossa capacidade de entrega para a sociedade.”
Outro que se pronunciou abertamente sobre a deterioração, durante a CPI das Americanas, foi o chefe do departamento de monitoramento, Gilneu Astolfi Vivan. “Precisamos refletir sobre o que a gente quer a respeito dos órgãos reguladores, que passaram por um processo de desmonte nos últimos 10 anos”, disse Vivan, citando a chegada de novas instituições ao mercado, com aumento da quantidade de trabalho e também como uma consequência dos avanços tecnológicos.
Regulação das criptos
Se não bastasse o aumento das atividades nos últimos anos, com o avanço da agenda de tecnologia e competição, em meio à redução do quadro funcional, na semana passada, o BC ganhou mais uma missão: o de regulador do mercado de criptomoedas.
Responsável pelo departamento que dá autorização ao funcionamento das instituições reguladas pelo BC, Carolina Bohrer, fez um apelo para a realização de concurso para que o BC tenha condição de agregar essas novas funções. “Precisamos reforçar os quadros do BC para fazer o nosso trabalho. Temos um pedido de concurso junto ao Ministério de Gestão”.
O Ministério da Gestão já anunciou a realização de concursos para áreas do funcionalismo federal este ano, mas não contemplou o BC. Segundo a ministra Esther Dweck, o pleito do BC está sendo analisado para o ano que vem, mas ponderou que já há pedidos para 70 mil novas vagas na Esplanada (e que nem todos poderão ser atendidos).
Nos bastidores do BC, há quem entenda que os pleitos da autarquia não devem ser atendidos enquanto Campos Neto estiver à frente da autoridade monetária, porque o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está em guerra aberta contra ele. Ontem, em nota, o presidente do Sindicato Nacional de Funcionários do BC (Sinal), Fábio Faiad, disse que “a responsabilidade pela política atual de taxa de juros” não é dos servidores, mas dos membros do Comitê de Política Monetária (Copom).