Dados da ONG SaferNet indicam a descoberta, em 10 anos, de 2.768 páginas brasileiras na internet com discurso contra a vida. Pornografia infantil e racismo são os outros crimes cibernéticos mais cometidos
Os primeiros dias de 2017 no Brasil têm provado que o pensamento filosófico acumulado durante séculos tem razão ao afirmar que o mal decorre das ações humanas e reside em atitudes reprováveis no contexto de valores da sociedade em que o indivíduo está inserido.
Na internet, sobretudo nas redes sociais, o ano começou com discursos compreensivos sobre as razões que levaram um homem a invadir uma festa de Ano Novo em Campinas (SP) para matar a ex-mulher, o próprio filho e mais 10 pessoas. Dias depois, os massacres nos presídios abriram o flanco para a propagação de mais discursos de ódio, apologia e incitação ao crime.
Segundo a ONG SaferNet, entidade que há 11 anos se dedica ao enfrentamento de crimes cibernéticos no Brasil, desde 2006 já foram encontradas 5.159 páginas na internet com pornografia infantil, 4.692 com discurso racista e 2.768 páginas com apoio e incitação ao crime contra a vida.
Ao longo desses 11 anos, os crimes de pornografia infantil, racismo e apoio e incitação ao crime contra a vida se revezam entre os três mais cometidos na internet brasileira. Em 2015 o racismo ficou na ingrata liderança, com 680 páginas descobertas, seguido pela apologia e incitação ao crime, com 352, e a pornografia infantil, com 250 páginas.
“O episódio em Campinas reativa um conjunto de personagens na própria rede que tem se ocupado bastante em disseminar conteúdo de intolerância e de ódio e, especificamente nesse caso, de violência contra as mulheres, que encontra bastante eco nas redes sociais quando pessoas se sentem à vontade para expressar esse discurso de intolerância”, analisa Rodrigo Nejm, diretor de prevenção e atendimento da SaferNet.
Para ele, apesar de a internet ser uma grande praça pública onde as pessoas expressam suas opiniões, é preciso perceber que a repercussão do que fazem não é apenas um comentário numa mesa de bar. “O que se comenta na rede tem repercussões como uma fala pública e a partir da qual você se torna responsável pelo posicionamento público, seja qual for o tema”, explica.
“Muitas vezes as pessoas confundem essa abertura importante da internet, que é dar voz à diversidade de opiniões dos mais variados fenômenos. Há uma linha tênue que parte da educação para a cidadania – a própria noção de direitos e deveres dentro e fora da internet –, porque esses discursos deixam de ser apenas opiniões e passam a ser discursos de ódio e de apologia à violência contra a mulher, o que não é uma simples opinião.”
O diretor da SaferNet avalia que, no caso do feminicídio em Campinas, a internet ficou dividida. De um lado pessoas chocadas com a barbárie do caso e com qualquer impossibilidade de justificativa para aquele ato e, de outro lado, pessoas que partiram em defesa do assassino a partir da divulgação de uma carta de teor bastante misógino, não só culpando a ex-mulher, mas todas as mulheres em geral. “A carta tinha comentários típicos do discurso fascista que não tolera a igualdade de direitos, não tolera a diversidade e quer impor por meio da violência uma única visão de mundo”, afirma Rodrigo Nejm.
A responsabilização legal
O diretor da SaferNet aponta o que considera uma contradição do discurso fascista que trafega na rede de computadores, supostamente baseado na liberdade de expressão, enquanto na verdade não tolera o pensamento divergente.
“Muitos dizem que estão na sua livre expressão, mas isso é um equívoco, porque justamente esse modo de expressão extrapola a questão da liberdade. A disseminação do ódio e da violência é uma conduta que massacra e aniquila a liberdade de expressão de todos os outros que não concordam com a mesma opinião. Isso é bem emblemático nos discursos da internet”, explica Rodrigo Nejm, destacando que os comentários que passam da opinião à apologia da violência podem ser responsabilizados na Justiça.
“Há certa banalização desse discurso de ódio na internet, muitos acham que é só uma conversa entre amigos, só uma opinião dada sem maiores responsabilidades. As pessoas ainda olham a internet como um espaço sem lei, de vale-tudo, e não um espaço público de direitos e deveres e de convivência social, no qual valem todas as normas sociais estabelecidas, inclusive as leis.”
Nejm pondera que as pessoas que cometem tais crimes se amparam na sensação de impunidade, acham que não serão descobertas ou sentem-se protegidas por um perfil falso. No entanto, o diretor da SaferNet lembra das várias operações policiais realizadas em casos de maior repercussão envolvendo pessoas famosas, o que prova ser possível identificar os autores dos discursos de ódio. “Já há evidência suficiente para deixar claro que essas violações são passíveis não só de remoção do conteúdo, mas também da responsabilização de quem publicou aquilo.”
A web brasileira
Os indicadores de denúncias recebidas pela SaferNet nos 11 anos em que a organização atua no Brasil indica, nos primeiros anos, o volume maior de crimes ligados a pornografia infantil e violência sexual contra crianças e adolescentes, principalmente no Orkut, rede social emblemática até há pouco tempo.
Nos últimos anos, conforme se diversificou o uso da internet e das próprias redes sociais, outros crimes passaram a ter destaque, como o racismo e o discurso de ódio, incluindo a violência contra a mulher.
Mas para Rodrigo Nejm é importante ressaltar que a internet em si não é responsável pela proliferação desses crimes. Na sua avaliação, a rede mundial de computadores é apenas um espelho da sociedade.
“Definitivamente não é um problema da internet como um espaço de violência. Ela reflete um conjunto de valores, o retrato da sociedade que temos. Quanto mais a sociedade estiver presente na internet, maior a representação de todos os problemas que nós temos na sociedade também na internet. E o fato é que nós temos mesmo no Brasil uma sociedade extremamente misógina, intolerante com a liberdade sexual das mulheres, racista e classista”, analisa.
Em 2015, as principais violações para as quais os internautas brasileiros contataram a organização para pedir ajuda foram, pela ordem: sexting (palavra originada da contração entre os vocábulos do inglês sex e texting) ou exposição íntima, com 322 casos; ofensa e cyberbulling, com 265 casos; e conteúdo de ódio ou violento, com 235 casos.
“A diferença da internet é que ela dá uma visibilidade astronômica, em outra escala, muito maior do que o círculo de amigos numa relação presencial. A partir dessa visibilidade se fortalecem as redes de interesse, que podem ser coisas positivas, como grupos de estudo de desenvolvimento científico ou tratamentos de doenças, mas também grupos que compartilham conteúdo de intolerância.”
Rodrigo Nejm pondera que o potencial da internet para dar visibilidade às ideias dos usuários e unir interesses é a parte boa da rede. A questão, afirma, é o desafio para as autoridades e os operadores do Direito de fazer valer nesses espaços sociais o combate aos excessos.
“A lógica tem de ser a de combater os excessos e não mudar ou condenar a própria dinâmica de liberdade da rede. É um desafio que se coloca para que possamos desfrutar dessa liberdade com segurança e respeito aos direitos humanos, e que as violações possam ser enfrentadas com o amparo legal que já temos hoje e que permitem responsabilizar quem comete excessos na internet”, argumenta Nejm, deixando nas mãos das autoridade e de cada cidadão a solução de um problema contemporâneo nada banal.
Fonte: Rede Brasil Atual