Em menos de um mês, o mundo perdeu dois gigantes, dois latino-americanos que projetaram positivamente a região no mundo, e que deixarão saudades
Em meados do ano passado, já em tratamento para enfrentar um câncer no esôfago, o ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica pediu a seu assessor internacional, Álvaro Padrón, que se comunicasse com o Papa Francisco. O líder da esquerda uruguaia, que esteve no Vaticano em 2013, quando era presidente, e em 2015, pouco depois de deixar o poder, queria voltar a se encontrar com o Pontífice. A sintonia entre ambos era profunda, e a ideia do uruguaio era que do encontro surgisse uma mensagem para os jovens, com os quais Francisco e Mujica tiveram uma conexão muito especial.
Segundo contou Padrón a meios de comunicação uruguaios, a carta enviada ao Vaticano foi respondida 20 minutos após ter sido recebida. O Papa telefonou para a casa de Mujica, e foi atendido por sua mulher, a ex-vice-presidente Lucía Topolansky. “Deixe de besteira, venha que você estará muito bem”, disse Francisco a Mujica, segundo o mesmo relato do assessor internacional do falecido ex-presidente. Mujica condicionara a viagem a seu estado de saúde.
Se o encontro tivesse acontecido, teria durado dois dias. O Papa e Mujica queriam ter uma longa conversa sobre as preocupações compartilhadas sobre a pobreza no mundo, a fome, as guerras, as mudanças climáticas, o impacto das redes sociais e da inteligência artificial e, sobretudo, a juventude. O futuro, a esperança. Segundo o assessor de Mujica, “a visita tinha o objetivo de enviar uma mensagem aos jovens porque era um assunto que preocupava a ambos”.

Os meses foram passando, e a saúde de Francisco e de Mujica foi se deteriorando. Finalmente, o Papa faleceu primeiro, e o ex-presidente uruguaio poucas semanas depois. Um encontro que teria significado muito para o mundo nunca saiu do papel. Uma enorme pena, porque teria tido uma repercussão e um impacto positivo enormes, em momento em que lideranças espirituais como as de Francisco e Mujica, um político que terminou seus dias falando mais sobre filosofia de vida do que sobre política, são espécie rara.
“Teria sigo algo absolutamente incrível, e ficou pendente”, disse Padrón. O assessor do ex-presidente fez as gestões necessárias, e o desejo era mútuo. Francisco e Mujica desenvolveram uma amizade ao longo dos últimos anos, uma amizade que fazia bem ao mundo. Ambos, cada um no seu lugar e com seus recursos, transmitiram mensagens que tinham destinatários similares. E ambos tinham uma capacidade muito especial de se conectar com as pessoas.
Não se trata de capacidade de oratória, isso muitos líderes tiveram ao longo da História, e nem sempre essa capacidade foi usada com fins pacíficos. Trata-se de fazer as pessoas se sentirem especiais, de estabelecer uma comunicação de igual para igual. De ter a capacidade de se conectar com todas as gerações. Nos funerais do Papa e de Mujica viram-se crianças, adolescentes, adultos e idosos. De todas as classes sociais. Porque ambos tiveram, por suas próprias personalidades, o dom de chegar a todos.
Mujica era agnóstico, e Francisco, o líder da Igreja Católica. Vinham de dois países-irmãos, vizinhos, nos quais ambos pregaram a defesa da justiça social e estiveram perto dos mais humildes. Não eram amigos nessa época. Cada um, do seu lugar, fez coisas semelhantes. Com o tempo, e no auge de suas vidas, se aproximaram. Foi uma dupla que dificilmente se repetirá. Em menos de um mês, o mundo perdeu dois gigantes, dois latino-americanos que projetaram positivamente a região no mundo, e que deixarão saudades.