Guerreira. Quantas vezes não classificamos uma mulher como guerreira em entonação de elogio para aquela que aguenta dupla, triplas, quadruplas jornadas de trabalho? Para aquela que cria os filhos sozinha? Para aquela que cuida dos filhos, da casa, dos pais, do marido? Por trás da mulher “guerreira” há uma mulher sobrecarregada e esgotada. E dela, quem cuida? Talvez a frase que mais possa unir mulheres, não é ser guerreira, mas: “estou exausta”.
A pandemia de covid-19 explicitou a realidade do trabalho do cuidado, doméstico ou de pessoas, exercido pelas mulheres. Com o isolamento social, mais da metade das brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia, segundo dados da pesquisa da Gênero e Número de 2020. No entanto, essa realidade sempre existiu: mulheres sempre foram a maioria da força de trabalho do cuidado. Um dos tentáculos do patriarcado estrutural, que coloca e mantém mulheres marginalizadas dos espaços de poder e do exercício de sua liberdade, as empurra para funções de cuidado. Da casa, dos familiares, dos filhos, do marido e até mesmo de colegas de trabalho. Foi estabelecido o super poder de perdoar, amar e maternar como instintos inerentes e biológicos, quando, na realidade, foram construídos para estruturar o lugar da mulher como mantenedora da vida e bom funcionamento das instituições patriarcais e capitalistas.
Historicamente, mulheres ocuparam a posição de mães, esposa e governanta. Com as lutas por direitos de trabalho, após a sociedade moderna industrial, as mulheres passaram a exercer funções fora de casa sem deixar de realizarem as demandas domésticas, trabalhando o dobro e recebendo menos. Passou-se a exigir de mulheres que trabalhassem sem reduzir seu tempo no papel de mãe e governanta. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) sobre Outras Formas de Trabalho 2022, divulgados pelo IBGE, no Brasil, 92% da população feminina realiza afazeres domésticos, contra 78% dos homens. Da mesma forma, 84,8% das filhas e enteadas cumprem tarefas domésticas, contra 66,5% dos filhos e enteados. Além disso, entre as mulheres 35% realizam cuidado de pessoas, contra 23% dos homens. Se considerar marcadores de raça e classe a discrepância entre homens brancos e mulheres negras é ainda maior. Mulheres negras gastam, em média, 27,6 horas semanais em afazeres domésticos, mulheres brancas gastam 24,2 horas semanais, quase dez horas a mais que os homens. Esse tempo equivale a um emprego de meio período depois de trabalhar 40 horas semanais. Como não ficar exausta?
É a chamada Economia do Cuidado: as atividades necessárias de cuidado para manter os indivíduos produtivos economicamente, como alimentar, educar, limpar, abrigar, zelar, organizar. Essas tarefas são indispensáveis para a manutenção da vida e bem estar dos sujeitos, e que, no entanto, são despejadas como responsabilidades sobre as mulheres. Ao associar o trabalho doméstico como demanda exclusiva e natural das mulheres, esse trabalho se torna invisível, não valorizado ou remunerado, mas que concentra enorme valor agregado, uma vez que sustenta toda a economia global. “O cuidado muitas vezes é visto somente no âmbito da afetividade. O perigo é quando olhamos apenas para a dimensão afetiva, porque contribui ainda mais para o aprofundamento da invisibilização do cuidado, já que ele não tem valor como trabalho, na esfera econômica”, aponta a pesquisadora Anabelle Carrilho em entrevista para Carta Capital.
Dessa forma, o patriarcado, que cria o ideal da mulher materna, alimenta o capitalismo, que, por sua vez, não tem despesa com o trabalho doméstico. As mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado, somando, diariamente, mais de 12 bilhões de horas gastas por mulheres e meninas em todo o mundo. O trabalho doméstico não remunerado representa 13% do PIB mundial. Esse trabalho gera 10,8 bilhões de dólares à economia do mundo e em reais chega a 50 trilhões reais – valor que é três vezes maior que o setor de tecnologia global, por exemplo – segundo dados da Oxfam Brasil de 2020.
Nessa conjuntura não é de se espantar no adoecimento físico e mental de mulheres sobrecarregadas. As duplas ou triplas jornadas não são apenas mais itens de afazeres diários num check list, existe uma carga mental por trás da responsabilidade de cuidar. É estar na reunião de trabalho pensando na lista de compras, é estar com os filhos pensando em uma função do trabalho. No livro Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas, Ruth Manus pontua: “O tempo que gastamos executando tarefas que deveriam estar mais bem distribuídas dentro da família é um tempo que estamos tirando de outras atividades importantes para nós. Tempo que poderia ser dedicado à nossa carreira, à nossa saúde física e mental, aos nossos prazeres, aos nossos amores. Continuar anuindo com essa sobrecarga é algo que nos custa afetivamente muito caro.” Após a pandemia, 45% das mulheres foram diagnosticadas com algum transtorno mental, como ansiedade, burnout e depressão, segundo a pesquisa Esgotadas: empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres, feita pela ONG Think Olga. A partir desse quadro nasce uma pergunta: com mulheres adoecidas, quem cuida de quem cuida?
Não são raros os depoimentos de mulheres que são abandonadas, afastadas e rechaçadas quando são diagnosticadas com alguma doença. Os dados mais alarmantes são de mulheres vítimas do câncer de mama: 70% das mulheres em tratamento da doença dizem terem sido abandonadas pelo parceiro, segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia. Por isso, nesse mês, conhecido como Outubro Rosa de combate ao câncer de mama, o mais comum e responsável por maior número de mortes de mulheres no Brasil, é essencial a conscientização, não apenas de exames de rotina em busca da prevenção, mas da economia do cuidado, das redes de apoio, da saúde mental das mulheres durante o tratamento e do cuidado das mulheres.
Para Ruth Manus, “as tarefas domésticas e todos os seus desdobramentos – econômicos, sociais e psicológicos – precisam ser pensados e repensados, sobretudo na estrutura em que existem no Brasil.” O cuidado é o maior subsídio à economia, é preciso remunerá-lo, valorizá-lo e visibilizá-lo. E o principal, é preciso cuidar de quem cuida.