Filipe Monteiro Jordão e Alexandre Mandl
Caso Cutrale: Tribunal de Justiça de São Paulo anula processo criminal contra MST – Vitória do movimento popular!
A imagem do trator destruindo pés de laranja em uma fazenda sob posse da multinacional Cutrale, localizada na cidade de Iaras, interior de São Paulo, foi divulgada com grande estardalhaço pela mídia em outubro de 2009. A ação do MST, que buscou denunciar a grilagem de terras públicas da União pela multinacional e lutar pela Reforma Agrária, deu vazão a uma desenfreada defesa da propriedade privada e do agronegócio, tidos como base fundamental para o desenvolvimento social e econômico do país.
Além da ardorosa campanha midiática, totalmente centrada na alegação de vandalismo do movimento, o episódio motivou o pedido de uma nova CPI do MST e da Reforma Agrária pela bancada ruralista, além de fomentar a prisão preventiva de 19 (dezenove) integrantes do Movimento Sem Terra, decretada ilegalmente ainda no curso das investigações.
A insistente defesa das laranjas da Cutrale, em oposição à necessária implementação de uma efetiva Reforma Agrária escancara uma contradição insanável do modo de produção capitalista: aos que ocupam terras particulares, o poder público reprime. Ao particular que se apropria da terra pública, há conivência. E isso em total afronta à própria Constituição Federal, que dispõe sobre a função social da terra como requisito para a manutenção da propriedade privada rural e, caso pública, de sua indisponibilidade.
Nas palavras do dirigente do MST, Gilmar Mauro, ainda no calor dos acontecimentos:
“Não preciso delongas para dizer que a Constituição de 1988 não foi cumprida. E muitos falam de Estado Democrático de Direito! Para quem? Com certeza estes vêem o artigo que defende a propriedade a qualquer custo. Este Estado Democrático de Direito para alguns poucos é o Estado mantenedor da propriedade, da concentração de terras e riquezas, de repressão e criminalização para os movimentos sociais e para a maioria do povo” (Adital, 08/10/2009).
A repressão e criminalização dos movimentos sociais, citadas por Mauro, é algo crescente e faz-se sentir em todo conflito envolvendo o capital financeiro. Diversas são as medidas judiciais contra a ação de movimentos e cidadãos que, por meio de sua ação organizada, tensionam a ordem econômica e orientam a uma nova perspectiva política. Esse é o caso do MST, do MTST e, também, do Movimento das Fábricas Ocupadas. A truculência policial e a judicialização dos conflitos sociais, aliados ao suporte permanente da grande mídia, alocam no campo criminal o que merece resposta no campo político.
Processo anulado e trabalhadores livres
Mas nem toda reação tem um mesmo desfecho: em decisão prolatada pela 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo no dia 11 de janeiro último, foi concedida a ordem de revogar a prisão preventiva e a anulação do processo desde o início.
A primeira, cabe informar, já havia sido parcialmente deferida em fevereiro de 2010 por meio de liminar que, reconhecendo a ausência de denúncia, configurou a prisão como uma antecipação de pena. Em resposta, a Procuradoria Geral de Justiça vislumbrou a aplicação da Lei 7.170/83, por meio de seus artigos 22 e 23. Dispondo sobre os crimes contra a segurança nacional, esta lei ditatorial mantém-se vigente no regime “democrático” como carta na manga contra a “subversão da ordem política ou social” que, de acordo com a Procuradoria, o MST como organização “terrorista” estaria induzindo. A argumentação é assustadoramente sincera: “Embora parte da população e de autoridades brasileiras esteja equivocada em termos de justiça e comportamento, ainda há uma parcela que resiste ao império do caos, da desordem e do pouco caso (por que esperarmos pela revolta civil?)” (grifo nosso).
Tal trecho demonstra bem o pensamento desta parcela da população, que tem agido de forma drástica na contenção dos movimentos, criminalizando ou cooptando suas lideranças. Aceitar tal postura, no entanto, seria ir além do aceitável no conto de fadas democrático, inclusive por não ser sequer de competência da justiça estadual.
Semelhante posicionamento, que para nós explode em sinceridade, foi extravasado em sentença decretada em maio de 2007 contra a administração operária das fábricas Cipla e Interfibra, de Joinville-SC. Atenta às ações vitoriosas do Movimento das Fábricas Ocupadas, a Justiça Federal ilustrou bem a preocupação da burguesia: “(…) a acolher-se o argumento de que tudo pode ser feito para a manutenção de mil postos de trabalho, estar-se-á legitimando o desrespeito odioso das leis e jogando por terra o Estado Democrático de Direito. Imagine se a moda pega?” (grifo nosso).
O temor da revolta civil, da “moda” de lutar por mudanças radicais na sociedade, acompanha o recrudescimento das ações repressivas, de maneira que o uso ampliado da força e dos aparelhos ideológicos contra tais manifestações torna-se frequente. Na garantia da ordem, o Ministério Público, verdadeiro cão de guarda da burguesia, tem cumprido primorosamente seu papel contra as lutas do campo e da cidade. No episódio em tela, ofereceu denúncia pela prática de formação de quadrilha ou bando armado, furto qualificado e dano qualificado aos integrantes do movimento.
Assim, mesmo estando clara a impossibilidade de manter uma prisão preventiva ilegal, cabia ainda analisar o mérito penal. Sendo insanáveis as contradições da denúncia oferecida pelo MP e, portanto, declarada inepta, foi anulado o processo desde o início (“ressalvado o direito de ser oferecida nova peça vestibular que preencha, e sem contradição qualquer, todos os requisitos legais”).
A publicação de tal acórdão é de fato uma vitória do movimento popular e de seus advogados que, como já seria possível prever, não teve a mesma repercussão que sua incessante acusação. É um importante precedente jurisdicional a favor dos trabalhadores, que escancara as ilegalidades cometidas na defesa do agronegócio e na contenção das lutas populares.
Poder Judiciário e luta de classes – papel da advocacia popular
Não cabe, no entanto, nutrir ilusões com a justiça. O Poder Judiciário, como garantidor da ordem burguesa, busca, com isoladas e raríssimas exceções de magistrados progressistas, aplicar a lei nos exatos termos de sua interpretação de classe. Ocorre que a arbitrariedade foi tamanha que não havia como dar sentido diverso sem romper, em última instância, com a própria ordem constituída. A atuação dos advogados militantes, que desvelaram de forma competente todo o rol de absurdos e contradições é, portanto, digna de aplausos e consideração.
Todavia, inúmeros são os casos em que, descaradamente, as cortes negam o “Estado Democrático de Direito” exatamente para mantê-lo, tomando a sua posição de classe acima da legislação. Mas isso tem seu preço político, que deve ser avaliado em cada situação. Neste episódio, apesar de excluído seu caráter penal, mantém sem solução o impasse denunciado pelo movimento. Preserva-se alheia, também, a ação midiática que cumpriu de forma competente seu papel em defesa do latifúndio. Portanto, está claro para nós que não caberia uma ousadia maior ao judiciário, já que a criminalização em si já foi feita com o uso dos meios de comunicação que criaram a matriz de opinião contra o MST.
Consciente de que a revolução social se conquista na rua e não no fórum, a advocacia popular atua pressionando a distensão dos ataques contra o movimento de massas, denunciando os abusos e buscando a aplicação da legislação favorável aos trabalhadores. Por meio de sua atuação foi possível tencionar o rol de arbitrariedades judiciais e libertar os militantes processados, extinguindo o processo e colocando a prova a efetividade da própria legislação burguesa. Não cumpre, portanto, um caráter subsidiário no movimento popular, como se poderia supor dado os limites da via legal. Como instrumento da luta, exerce sua função no interior das contradições do sistema, afrouxando ou mesmo repelindo as investidas contra a ação organizada da classe.
O Movimento das Fábricas Ocupadas se mantém presente no apoio aos camaradas, na certeza de que novos ataques virão. Entre estes, no entanto, espera-se comemorar novas vitórias – como a que atualmente se comemora. Por meio da ação organizada dos trabalhadores, no campo e na cidade, contemplaremos o irremediável fim da burguesia e de suas instituições. A luta continua, como um trator vermelho, em novos laranjais!
Sumaré, 24 de janeiro de 2010.
Fonte: enlacers.com.br