“Esse Jango é frouxo”, ouviu Carlos Augusto Marighella, estudante de então 15 anos, de um cabeludo com pinta de motoqueiro. O cabeludo era Carlos Marighella, seu pai, disfarçado. E o encontro se deu em princípios de maio de 1964, em uma padaria nas cercanias do colégio onde o garoto estudava, na Tijuca, no Rio de Janeiro, como narra o livro “Marighella – o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, do jornalista Mário Magalhães sobre a vida do ex-deputado comunista, guerrilheiro e fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), morto em 1969 em uma emboscada policial em São Paulo.
“O Marighella, goste-se ou não dele, não é um personagem que morreu no passado, é um personagem absolutamente atual. Como dizem os partidários de Marighella, ‘Marighella vive’. O Brasil está começando a conhecer Marighella, mas enquanto a história dele não for contada nos livros escolares, nos manuais de história, ele vai continuar sendo um maldito. Eu não advogo que os livros de história, nas escolas, propagandeiem o Marighella; nem defendo que sejam libelos contrários a ele, mas não contar a história do Marighella seria desonestidade intelectual. E é o que se faz hoje, desonestidade intelectual”, diz o autor sobre as motivações que o levaram a escrever a obra de 717 páginas que tenta reverter esse quadro.
48 anos depois daquele encontro nas cercanias do colégio Batista, Carlinhos relembra a convivência com seu pai. “A despeito de viver uma vida extremamente atribulada, meu pai era uma pessoa muito alegre, muito bem humorada. Era um pai muito amigo, muito brincalhão, um pai que gostava de correr e nadar comigo na praia, e também de corrigir as provas da escola”, diz ele sobre os tempos de colégio semi-internato, de onde foi expulso por se chamar Marighella.
Apesar de vítima da direção escolar, Carlinhos guarda boas lembranças da solidariedade dos colegas, e da formação que recebeu do pai, sem a obrigação da militância política. “Nós morávamos em um apartamento pequenininho, mas coberto de livros. Ele queria que eu lesse Jorge Amado, e também comprava Julio Verne e tudo mais, uma leitura selecionada. Lembro que ele me deu uns livros de Caryl Chessman, que era um homem condenado à morte nos EUA e que na cadeia começou a escrever livros e fazer uma reflexão sobre a vida e o judiciário americano. Pois meu pai me deu esses livros porque ele participava de uma campanha, ele queria incentivar as pessoas a abolir a pena de morte no mundo, e queria me conquistar para isso”, diz ele, que depois se filiou ao Partido Comunista por vontade própria.
Sobral Pinto
O encontro com o “motoqueiro” foi uma das últimas vezes que Carlinhos teve uma relação física, pessoal, com Marighella. “Meu pai foi preso em 64 e eu tinha 15 anos de idade. Ele ficou cerca de 50 dias na cadeia. Quando saiu, eu fui visitá-lo”, afirma, sobre outra ocasião em que viu o pai. Após a visita, Carlinhos tinha uma missão. “Recordo que ele pediu para eu contratar Sobral Pinto para impetrar um mandato de segurança ou um habeas corpus. E Sobral Pinto, ao patrocinar essa causa, ele que era um apoiador do golpe militar por razões da igreja católica, percebe que era o momento de denunciar as atrocidades e o risco que o golpe significava para as instituições brasileiras. Isso se deve ao contato que ele teve com meu pai e as razões que meu pai deve ter apresentado a ele”.
Dali em diante, Carlinhos nunca mais estaria com seu pai. “Falei com ele por telefone e carta. De 64 a 69 meu pai se tornou uma pessoa totalmente clandestina e lançou a proposta de luta armada. A partir daí as perseguições chegaram a um limite intolerável, até que ele foi assassinado”.
Morte
Em novembro de 69, minuciosamente narrado no livro nos capítulos Tocaia e Post-morte: anatomia de uma farsa, Carlinhos já morava em Salvador, onde reside até hoje como advogado. Na época, “o que a família sabia era o que se publicava nos jornais, geralmente ‘Marighella morreu’, ‘Polícia quase encontra Marighella’. Enfim, como aquilo quase nunca se confirmava, foi criando na gente a expectativa de que afinal meu pai ia conseguir sair incólume. Até que uma noite recebi um jornalista em casa me pedindo que fosse a um jornal identificar fotos que davam notícia da morte de meu pai. Fui quase que com enfado, porque para mim era uma repetição mentirosa daquelas notícias”.
No entanto, lá, deparou-se com a dor. “Tinha um telex que recebia notícias do mundo todo. E aí, quando a máquina começou a vomitar aquela notícia, ia compondo, como se fosse um fax, fotos e textos. Eu aterrorizado vi que aquela imagem que ia se formando lentamente era efetivamente o rosto de meu pai. Foi um choque tremendo, mas ali mesmo eu jurei para mim que era preciso resgatar, provar para todo mundo que meu pai não era aquele facínora, que ele não era digno de morrer daquele jeito”, afirmou ele, sereno, observando o grande número de leitores que fazia fila para comprar o livro e conhecer um pouco mais de Marighela durante o lançamento da obra de Mário Magalhães, no dia 13 de novembro, na Livraria da Travessa, no Rio.
Coerência
Entre os leitores, antigos companheiros, como Carlos Eugenio Paz. O ex-comandante Clemente da ALN preza a coerência que Marighela sempre demonstrou, seja em conversas com um estudante aspirante a revolucionário, seja em sua visão de compromisso com o país. “Era um homem que vivia aquilo que pregava. Um homem com aquela estatura me ouvia, um garoto de 15 para 16 anos. Propunha para a gente uma organização horizontal, onde não tinha chefes. Onde ele, com toda a estatura de líder, abdicava do poder de decidir, nos deixava a iniciativa”, diz Paz sobre a convivência com “Mariga”, ou “Preto”, após o primeiro encontro em 1966, em uma caminhada por um Aterro do Flamengo ainda em construção.
“Muita gente pergunta se não foi um erro o Marighella ficar no Brasil, ao invés de sair para se preservar. Eu respondo sempre assim: não sei se foi erro ou acerto. Agora, se o Marighella sai do Brasil, ele não seria o Marighella. Porque exatamente a maior qualidade dele era essa. Além de ser um estrategista, um teórico, um homem com ideias na cabeça, ele vivia o que ele pregava; e mais, ia na frente. Ele não pedia a ninguém para fazer um sacrifício que ele também não estivesse fazendo. Marighella nunca me pediu um risco que ele também não estivesse correndo”, afirma.
Atemporal
Sem riscos da chuva que caía lá fora, abrigados na elegante livraria de Ipanema, muitos folheavam a obra que ao custo de R$ 57, pouco menos de 10% do salário mínimo brasileiro, evidencia o quanto o país ainda está longe da realidade sonhada pelo biografado. A maioria das opiniões era do importantíssimo resgate histórico que a obra proporciona. Em rodas de conversa, a evolução da ditadura para a democracia consolidada era lembrada, mas a troca da solidariedade pelo individualismo questionada. Na impossibilidade da comparação, a voz negra da Bahia falava mais alto.
“Tem algumas coisas da atuação humana, pessoal, social e política de meu pai que eu acho que continuam muito importantes. A gente precisa difundir valores, valores que sirvam como referência para que a gente tenha orgulho de ser brasileiro e tenha vontade de construir esse Brasil. Não é uma questão de ideologia, mas valores humanos. Meu pai era patriota, era uma pessoa despojada, que amava o povo brasileiro. Era um homem que trabalhava, que tinha coragem de enfrentar a luta por suas ideias. É um homem que é efetivamente um exemplo. Marighella é uma pessoa com esta marca, uma marca de um homem excepcional, de um homem que será sempre útil em qualquer país, em qualquer geração”, disse Carlos Augusto Marighella.
Fonte: Carta Maior