Em seu mais recente livro, O Pobre de Direita: a Vingança dos Bastardos, o sociólogo Jessé Souza explora o perfil do trabalhador precarizado e humilhado de nossos tempos, utilizando como metáfora o personagem Coringa
No meu livro, recém-lançado, sobre “o pobre de direita”, fiz um capítulo usando a mesma expressão que está no título deste artigo. A arte muitas vezes ajuda a ciência e prefigura as características essenciais de uma época histórica. Para mim, o Coringa representado pelo grande Joaquin Phoenix, no filme de 2019, não seria, portanto, um ponto fora da curva. Ao contrário, seria a representação perfeita do trabalhador precarizado, empobrecido e humilhado de nossos tempos.
Quando o terrorista bolsonarista em Brasília explodiu uma bomba em si mesmo, embora o alvo fosse o Supremo e Alexandre de Moraes, vestido de coringa, muitos mencionaram uma capacidade mágica e preditiva do texto do livro. Infelizmente não tenho bola de cristal, mas o estudo cuidadoso e o trabalho empírico de adentrar ao mundo do trabalhador humilhado de nossos tempos me fez, quero crer, compreender as estruturas profundas do que está em jogo aqui.
A característica mais essencial para a existência dos coringas contemporâneos é a sua desorientação. No caso brasileiro, é um trabalhador que a partir do golpe de 2016 empobrece visivelmente. O aumento real dos salários em até 70% na era Lula, que garantia uma dieta mais saudável, a possibilidade de mandar o filho a uma escola particular e a construção racional de um futuro possível, voltou a ser apropriado pelo rentismo improdutivo da Faria Lima — aliás, este foi um dos motivos principais do golpe —, empobrecendo a massa de trabalhadores que se torna cada mais precária e explorada. No entanto, ninguém jamais explicou para ele que seu maior inimigo é a sanha do saque financeiro de toda a população por uma meia dúzia de especuladores.
Como essa raiva não pode ser canalizada contra a elite que o saqueia, ele tem então duas alternativas. A primeira é canalizar a raiva contra si mesmo, afinal ele, como todo pobre, acredita na meritocracia, e passa a se ver como fracassado — o que o levará a depressão ou ao alcoolismo, as duas doenças endêmicas do trabalhador de hoje. A segunda, que é para onde tanto a extrema direita quanto a pregação evangélica convergem, é canalizar a raiva contra grupos já previamente estigmatizados e ainda mais frágeis do que ele.
Muitos passam a achar que é o nordestino preguiçoso do Bolsa Família quem roubou seus parcos recursos. Ou ainda o negro construído como bandido. Ou ainda o falso moralismo da corrupção seletiva propagado por todas as mídias que identifica a “roubalheira do PT” como a causa. Não por acaso, o racismo esta por trás de todas essas opções por meio de máscaras convenientes: o nordestino, cujo povo é 80% mestiço ou preto, o bandido construído como o negro e o suposto povo corrupto eleitor de corruptos, de modo a desmoralizar o voto e a participação popular da maioria mestiça, negra e pobre.
A pregação evangélica e a extrema direita se tornam a boia de salvação moral do “pobre remediado”, àquele que ganha entre dois e cinco salários mínimos e que foi o segmento social suporte do bolsonarismo em todas as eleições. É o terreno social do branco pobre do Sul e de São Paulo e do negro evangélico do resto do país. A pregação evangélica serve para defini-lo como o “homem de bem” contra o pobre transformado em delinquente. Daí apoio à violência policial contra pretos e pobres. Ao criar a distinção entre o pobre honesto e pobre delinquente — que pode ser o bandido, o gay, e até a mulher —, a pregação evangélica possibilita que ele canalize seu ódio não mais contra si mesmo, mas, agora, contra o segmento mais pobre dos que ganham até dois salários mínimos, além das vítimas do machismo e da homofobia.
Ao garantir autoestima para o trabalhador humilhado, ainda que às custas do maior sofrimento dos grupos estigmatizados, tanto a pregação evangélica quanto a extrema direita passam a controlar a alma desse público. Autoestima e algum respeito e reconhecimento social são, afinal, as necessidades mais prementes de todos os seres humanos.
A extrema direita, no entanto, vai ainda mais além e cria toda a espécie de espantalho para representar o “sistema”, desde que nunca se nomeiem os reais algozes. Esses espantalhos são intercambiáveis. Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal Federal são, no entanto, percebidos como os símbolos da elite de poder que causa a opressão. Do mesmo modo que a pregação evangélica, a extrema direita fornece, desse modo, um propósito na vida e a ilusão de se estar participando da vida política para alguém que sempre se sentiu alijado e sem importância. E isso não é pouco para quem é humilhado.