Já deve ter passado pela cabeça de todo mundo que se posicionou ao lado da democracia: “e se tivesse acontecido?” Façamos um exercício de imaginação
No aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964 é fato que a maior parte da população brasileira atual não viveu aquele 1º de abril nebuloso. O tempo passou, mas um evento ocorrido há pouco mais de um ano nos aproximou demais do passado. Está na cabeça de todos aquele domingo, 8 de janeiro de 2023.
As cenas, num primeiro momento, eram inacreditáveis. Confusão, invasão, destruição e o centro do poder político nacional, nos Três Poderes, em ruínas, com uma horda de celerados clamando por uma ação das Forças Armadas que pusesse fim à jovem democracia brasileira, à época às portas de completar 38 anos.
Passado o susto inicial, e sabendo que um decreto de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) esteve prestes a ser assinado no calor do momento, o que traria consequências nefastas, quem não se perguntou: “e se o golpe tivesse acontecido e Jair Bolsonaro tivesse se tornado um ditador?”.
“Estes exercícios de pensar probabilidades temporais são muito interessantes, desde versões alternativas de fatos históricos e até mesmo realizar projeções de futuro. Sempre reflito como teria sido os rumos da sociedade brasileira hoje caso a experiência democrática entre os anos de 1946 e 1964 não tivesse sido interrompida por uma ditadura de 21 anos”, opina Cesar Agenor Fernandes da Silva, professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR), que é doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Em nossos tempos, ao pensar as consequências de um possível êxito da intentona bolsonarista, nosso olhar se volta para o passado, pois o que o ex-presidente tentou emular em seu governo, repleto de militares da ativa em diversos escalões, foi a nostalgia do regime civil-militar-empresarial. Os passos desse regime seriam reprisados, se não integralmente, ao menos com uma nova roupagem. Do ponto de vista institucional, o governo autoritário de Bolsonaro precisaria passar um verniz de aparência democrática; para tanto, buscaria rapidamente apoio do Congresso para sua permanência na Presidência. Muito provavelmente Arthur Lira [presidente da Câmara dos Deputados] conseguiria movimentar as peças para que isso se concretizasse. Feito isso, teríamos as intervenções nas unidades da Federação com a nomeação de interventores nos governos dos estados e em prefeituras das capitais e áreas de segurança nacional, especialmente em estados e municípios que representassem ou manifestassem qualquer tipo de oposição. Fechar, prender e substituir os ministros do Supremo Tribunal Federal e cassar e extinguir direitos políticos de parlamentares e partidos de oposição seriam uma medida tomada simultaneamente. Tudo isso ocorreria de forma muito mais acelerada do que ocorreu no governo Castello Branco, pois o cenário internacional não seria favorável à ruptura democrática no Brasil e a institucionalização do golpe não teria tempo a perder.”
Neste exercício de imaginação realizado a pedido da Fórum, Cesar também vislumbrou que uma resistência seria imediatamente constituída, visto o próprio racha ocorrido no período eleitoral, assim como o acirramento de ânimos presente em nossa sociedade desde a eclosão do bolsonarismo como forte força política, ainda nas eleições de 2018. No entanto, o historiador lembrou que a máquina de repressão de Jair Bolsonaro já vinha se desenvolvendo havia algum tempo e isso facilitaria uma “caçada” desde o primeiro momento em que a ditadura se instalasse.
“Claro que esse rearranjo institucional autoritário geraria forte oposição social, pois boa parte dos setores democráticos e dos movimentos sociais brasileiros se uniriam naturalmente. A resposta contra as manifestações populares viria muito rápida com ações articuladas entre o governo central e as polícias militares, pois muitos praças e oficiais das forças públicas adeririam ao movimento bolsonarista, o que provocaria uma onda de repressão aberta sem precedentes em nossa história, incluindo carta branca do governo federal para que esses agentes do Estado pudessem barbarizar comunidades periféricas em nome de um suposto combate ao crime. Jornalistas, intelectuais, artistas e produtores de conteúdo em redes sociais e em outras plataformas digitais que foram críticos antes e depois do golpe também seriam perseguidos e presos muito rapidamente, pois a Abin “paralela” já possuía informações que identificavam opositores e detratores do governo desde 2019. Governar por meio de atos institucionais seria o modus operandi de Bolsonaro”, acrescenta o acadêmico.
Por outro lado, o professor da Unicentro-PR coloca em dúvida o quanto uma ditadura bolsonarista poderia aguentar de pé, já que o cenário internacional atual não é propício para a consolidação de um regime assim, totalmente anacrônico e démodé num mundo multipolar como o de agora.
“A questão que fica é por quanto tempo esse governo persistiria, pois não estamos em um cenário de polarização mundial, como na época da Guerra Fria, no qual os regimes autoritários contaram com apoio automático e quase irrestrito dos governos dos EUA e de outras potências. Além disso, o cenário econômico provavelmente se deterioraria muito rápido com bloqueios internacionais e, mais do que isso, com a total falta de investimentos em setores estratégicos da economia, pois o projeto de privatizações não encontraria oposição. O favorecimento de setores financistas seria escancarado e ainda maior do que foi no governo legalmente constituído anteriormente. A distribuição da riqueza seria esquecida completamente e as desigualdades econômicas e sociais se acentuariam ainda mais. Seria quase impossível conter o descontentamento interno e externo, mas até a queda deste cenário a vida de muitas brasileiras e brasileiros teriam sido ceifadas”, imagina Cesar.
Quem também colocou em prática o imaginário com base no conhecimento histórico foi o historiador e advogado Marcelo Cardoso da Silva, professor há mais de 25 anos em cursos preparatórios pré-vestibulares do estado de São Paulo e formando na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Além da experiência nas salas de aula, Cardoso também atua nos tribunais. Tendo em vista este fato, a pergunta da Fórum foi sobre os impactos na Justiça e no sistema judicial do país.
“O golpe prejudicaria ainda mais o sistema pelo descrédito que ele já vem vivendo. Estamos numa sociedade que não acredita nas suas instituições e a prisão do Bolsonaro, que não acontece de forma alguma, só serve como uma comprovação disto. O modelo imposto por essa ideologia extremista trazida pelo bolsonarismo é a de transformar as instituições em algo que seja uma chacota, pois assim nada precisa ser respeitado. Podemos notar como foi feito com as urnas, vacinas, meio ambiente e todas as outras pautas importantes para o país. O sistema de Justiça é só uma continuação da formulação de descrença nas instituições. Isso ocorre no Brasil quando, por exemplo, há a ocorrência da revolta de Canudos, que desumanizou os sertanejos, os apresentando como se fossem fanáticos que deveriam ser eliminados para não pôr em risco a ‘sociedade de bem. É um processo de confundir para poder justificar as atrocidades, e sem dúvidas isso se repetiria”, diz o também historiador.
Já para Cesar, também instado a imaginar da forma mais realista possível como seriam essas mudanças em suas atividades na universidade, o impacto viria muito mais rápido e de forma radical, segundo seu entendimento.
“Tenho certeza de que as consequências seriam muito duras para o universo de professores universitários e produtores de conteúdos independentes, nos quais me enquadro integralmente como historiador/pesquisador e produtor/apresentador de podcast. Não custa lembrar que o governo Jair Bolsonaro já vinha atropelando as decisões democráticas para escolha de reitores nas universidades federais, tendo casos de reitores nomeados que não constavam da lista tríplice dos indicados pela comunidade universitária. Para isso se estender às universidades estaduais seria muito rápido. As áreas de ciências humanas e sociais e as universidades públicas em geral passariam a receber forte vigilância ideológica, pois não é de hoje que teorias da conspiração vociferam que todo o sistema de ensino é doutrinado e que nós na universidade somos parte do exército da ‘guerra cultural’, do ‘marxismo cultural’ que quer manter uma espécie de monopólio ideológico, artístico e cultural sobre a sociedade. Em situações do cotidiano, qualquer crítica, fala ou posicionamento que pudessem ser considerados como ofensivos ao novo regime de exceção geraria, sem muito trabalho burocrático, exoneração do cargo e até mesmo prisão por ‘atentado contra a segurança nacional’. Muitos de nós, com medo de perder o sustento de suas famílias, teríamos que nos sujeitar ao regime, ou evitar ao máximo se expor publicamente. Isso ocorreu no meio acadêmico, intelectual e artístico durante a ditadura civil-militar empresarial e provavelmente se repetiria. Confesso que viveria me equilibrando em uma navalha muito afiada com grandes chances de em algum momento romper o silêncio forçado. Despejaria todas as críticas publicáveis e impublicáveis contra a situação política, econômica e social. As consequências seriam terríveis para os meus, pois sou pai de duas crianças diagnosticadas no transtorno do espectro autista. Essa situação, muito provavelmente, manteria a mordaça apertada em minha boca por um período muito maior do que eu desejaria”, conclui.