A escravidão é sua face extrema. Mas milhões já não alcançam dignidade pelo trabalho, devido à degradação das condições e dos ganhos. À sofisticação dos meios de extração do mais-valor corresponde a brutalização das vidas precarizadas
Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, com a descoberta de 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo, em 2022, chegou a 60.251 o número de trabalhadores resgatados desde 1995. Neste ano, foram criados grupos especiais de fiscalização móvel, objetivando combater a escravidão no país. Dos resgatados no ano passado, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste e 58% nasceram na região. Além disso, 23% não tinham completado o 5º ano do ensino fundamental, 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% eram analfabetos. No total, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2% indígenas. Dos resgatados em 2022, 148 eram estrangeiros: 101 paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, 4 haitianos e 4 argentinos. Do total de trabalhadores resgatados, 87% estavam operando em atividades rurais.
O trabalho análogo ao escravo, em pleno século XXI, se insere em um quadro estrutural de superexploração no Brasil, que vêm desde que o país foi descoberto. Seja na fase colonial, na qual a esmagadora maioria era explorada, seja, depois, na fase neocolonial, na qual o Brasil sempre ocupou um papel de fornecedor de riqueza a preços módicos, de todas as formas possíveis e imagináveis, para o centro de dominação imperialista.
As denúncias sobre o trabalho escravo devem servir para um necessário debate sobre a “escravidão” no trabalho nos dias de hoje, nos quais, as dificuldades dos trabalhadores se agravam, em função de o país estar enfrentando uma verdadeira guerra econômica e política. Não é outro o motivo da política do banco central, chamado “independente”, que mantém a maior taxa de juros reais do planeta, contra tudo e contra todas as correntes de pensamento econômico no Brasil. Pouca gente, além dos banqueiros e seus representantes, apoia a política atual do Banco Central.
O problema da superexploração no Brasil é gravíssimo, o trabalho escravo é um dessas inúmeras formas de exploração dos trabalhadores. Contamos com um dado que é uma ilustração-síntese desse problema: cerca de 50 milhões de brasileiros estão escorados no Bolsa Família para não passarem fome. Esse número representa 24% da população, que depende do governo para comer, no país que é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo e o primeiro produtor de proteínas.
São conhecidas as desigualdades regionais do país. Pode-se dizer que, em algumas regiões do Brasil, os direitos advindos da revolução de 1930 ainda não foram implementados. Mas superexploração não é exclusividade das áreas rurais, do chamado Brasil Profundo, na qual localizam-se a esmagadora maioria dos casos de trabalho escravo, como vimos. No Brasil, na América Latina, na África, na Ásia, e mesmo no interior dos países ricos, a burguesia combina inúmeras formas de explorar o trabalhador, acima do que poderia ser considerado “normal”. A partir das formas principais de superexploração (pelo salário, pela jornada, pelo ritmo e condições de trabalho), as combinações são as mais variadas possíveis. Cada uma dessas formas gerais se concretiza em vários métodos específicos de extrair mais valor da força de trabalho.
Nos assustamos – com inteira razão – com a condição de trabalho análogo ao escravo, mostrada pelos indicadores e fotografias. Mas, segundo o Dieese, a principal motivação das greves em 2022 (foram catalogadas mais de 1.000), foi o não pagamento de salários. Isto é, o trabalhador dá duro o mês todo, ganha pouco, e ainda tem que fazer uma paralisação para receber os salários (para maiores detalhes, ver pesquisa do SAG – Sistema de Acompanhamento de Greves do Dieese).
O trabalho em situação análoga ao escravo é completamente degradante. Mas é certo que os quase 15 milhões de desempregados e desalentados (segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio, do IBGE), uma verdadeira multidão, vivem em uma espécie de escravidão. O país tem 39% da população ocupada na informalidade, alguns estados registram taxas beirando os 60% da força de trabalho, nessa condição extremamente desfavorável. Pelo que se conhece do mercado de trabalho, a maioria das funções exercidas na informalidade lembram condições de semiescravidão, também.
A partir da aprovação da Reforma Trabalhista de 2017, no governo de Michel Temer, o Brasil assistiu ao maior ataque da história contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Foram alterados mais de cem pontos nas leis trabalhistas, trazendo, entre outras violências, o trabalho intermitente, o trabalho parcial, as terceirizações para as atividades fim, a exposição de trabalhadoras grávidas a ambientes insalubres de trabalho. A intenção dos governos do golpe (Temer e Bolsonaro) era mais abrangente: Jair Bolsonaro, em março de 2019, fez uma promessa nos Estados Unidos, em reunião com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa” (18/03/2019, afirmação feita na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington).
A superexploração da força de trabalho na periferia capitalista, na medida em que transfere maiores quantidade de valor para os países imperialistas, exerce uma importante funcionalidade na engrenagem capitalista internacional. Esse sistema, neste momento, não suporta melhorias das condições de vida do povo, mesmo que superficiais. A superexploração no Brasil tem o fundamental papel do Estado. Como em economia não existe mágica, enquanto os trabalhadores ficam mais pobres, aumenta exponencialmente os gastos do Brasil com juros da dívida. Somente no ano passado essas despesas, oficialmente, chegaram a R$ 780 bilhões.
A dívida pública é uma ilustração completa de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam sem ao menos saber. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. Se a população entendesse que o país que não consegue crescer, que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diariamente bilhões para super ricos, a situação obviamente seria outra.
O fenômeno da superexploração em sociedades como a do Brasil gera um ambiente de intensa violência estrutural contra a maioria da população. As várias formas de superexploração do trabalho, agressivas por si só, levam a uma intensa violência contra a população em geral. É a força da violência e coerção do Estado garantindo as condições para os trabalhadores aceitarem um regime de brutal superexploração.
JOSÉ ÁLVARO DE LIMA CARDOSO
Economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina