O governo Dilma levou à frente na semana que passou o modelo previdenciário preconizado pelos bancos, com a aprovação, na Câmara de Deputados, do projeto que cria o Fundo de Previdência Complementar dos servidores públicos federais – o Funpresp.
Este modelo teve o seu início com as mudanças efetivadas por FHC, principalmente no regime geral da previdência social, referente aos trabalhadores do setor privado. No governo Lula, esse processo prosseguiu com mudanças nas regras previdenciárias do regime próprio dos servidores. Uma dessas mudanças previa a criação deste fundo de previdência complementar, agora regulamentado pelo projeto aprovado na Câmara, e que terá ainda de passar pelo Senado Federal, antes da sanção presidencial.
Esse modelo, defendido pelo Banco Mundial, sempre foi explicitado como uma exigência do setor financeiro, constante em uma série de condições inclusas nos diversos acordos firmados pelo Brasil com o FMI.
A característica básica desse modelo é a instituição do chamado regime de capitalização, para o financiamento de aposentadorias e pensões. Este regime de capitalização passa a integrar o sistema geral previdenciário, contemplando faixas de renda superiores ao valor do teto estabelecido para o pagamento de benefícios bancados pelo Estado, através do chamado regime de repartição.
Quais são as características desses dois modelos, o de repartição e o de capitalização, no caso brasileiro?
No regime de repartição, que é o adotado constitucionalmente pela Previdência Social Pública brasileira, as contribuições de empregados e empregadores, acrescidas de receitas de contribuições específicas do Orçamento da Seguridade Social, financiam o pagamento dos benefícios – pensões e aposentadorias. Trata-se de um regime de solidariedade entre gerações, onde a camada da população em idade laborativa paga a despesa da parcela da população que já se encontra aposentada. No caso brasileiro, o Orçamento da Seguridade Social também é a fonte de financiamento das despesas de saúde e de assistência social – importante conquista da Constituição de 1988 – e que conta, para tanto, com contribuições tributárias criadas especificamente para fortalecer as receitas deste Orçamento, como são os casos da Cofins – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – e da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas. Afora situações especificamente previstas em Lei, e que no seu conjunto são residuais, o valor estabelecido atualmente como teto máximo de pagamento é de R$ 3.916,20.
O regime de repartição é também o modelo adotado para o regime próprio dos servidores públicos federais, já contratados, pois, para os servidores concursados a partir da promulgação da Lei que institui o Funpresp, passará a vigorar a combinação dos dois modelos – repartição e capitalização.
O regime de capitalização, por sua vez, baseia-se na concepção da contribuição individual de cada trabalhador ser destinada a um programa de investimento financeiro que, através de sua rentabilidade e capitalização, permita ao administrador desses recursos o pagamento futuro de benefícios diretamente relacionado ao trabalhador contribuinte. Esse modelo funciona, portanto, como se fora uma espécie de caderneta de poupança, individualmente definida para cada contribuinte. O valor futuro do benefício a ser pago ao trabalhador, pelo administrador dos recursos, dependerá do valor da contribuição efetivada pelo mesmo e do valor capitalizado ao longo do tempo, variável de acordo com a estratégia financeira adotada pelo aplicador/administrador desses recursos.
A diferença básica entre esses dois modelos é que, em um deles, o da repartição, o futuro do pagamento dos benefícios depende das contribuições da geração que se encontra em idade economicamente ativa. No outro modelo, o futuro do pagamento depende do sucesso rentável das aplicações a serem feitas. No regime de repartição, o futuro é garantido pelo trabalho; no regime de capitalização, o futuro depende da especulação.
No caso brasileiro, é importante, também, contestar versões oportunistas que nos dão conta de um envelhecimento acelerado da população brasileira – que colocaria em risco crescente o modelo de repartição.
Lembro que, em 2010, de acordo com o IBGE, 67% da população encontravam-se na faixa de idade entre 15 e 65 anos, e menos de 10% da população tinham idade acima de 65 anos. A projeção do IBGE, para o ano de 2050, estima que teremos um pouco menos de 20% da população com mais de 65 anos, enquanto a população economicamente ativa (entre 15 e 65 anos) se situaria um pouco acima de 63% do total de brasileiros. Mesmo levando-se em conta que boa parte dessa população ativa não esteja contribuindo para uma previdência pública, não há problema à vista, desde que tenhamos crescimento econômico e formalização do mercado de trabalho.
Ao contrário, com decisões adequadas, temos, ou teríamos, todas as condições de fortalecer um robusto e importante fundo previdenciário, nos preparando – de fato – para um futuro onde essas excepcionais condições de distribuição etária da população brasileira viessem a se alterar.
Porém, estamos tomando o caminho inverso.
Uma das conseqüências do avanço das mudanças previdenciárias no regime geral da previdência foi a adoção de uma série de medidas que, na prática, reduzem o valor médio das aposentadorias efetivamente pagas. Um exemplo disso é que, apesar do teto do regime geral ser hoje no valor de R$ 3.916,20, é praticamente impossível a um trabalhador obter uma aposentadoria com esse valor, em decorrência especialmente da adoção de uma fórmula – o Fator Previdenciário – que, na prática, impõe um significativo redutor no valor a ser calculado para a aposentadoria, ou pensão, a ser paga.
O resultado desse processo é que, nos últimos anos, cresceu de forma espetacular no Brasil o mercado de previdência privada, baseado justamente nos regimes de capitalização. Frente ao reduzido valor-teto do benefício pago pelo INSS, houve uma corrida da parcela da população com renda suficiente para tanto para esses programas privados de previdência.
Isto significa que parcela importante da poupança previdenciária dos trabalhadores brasileiros se direciona, de forma crescente, aos esquemas da previdência privada, ao invés de serem fontes de financiamento e sustentação de uma previdência social pública, baseada no seguro regime de repartição.
E quem são os principais beneficiários desse processo? Justamente, os tais administradores profissionais dos esquemas de capitalização: bancos, fundos de investimento, administradores de carteira, em especial fundos de pensão.
Cobrando taxas de administração onerosas, essas instituições passam a deter uma soma de recursos cada vez maior, diversificando sua capacidade de intervenção econômica e financeira, acumulando poder e, prometendo, para um futuro longínquo, uma segurança mais que questionável.
A esfera financeira pelo mundo inteiro – e a crise mundial deixa clara essa situação – exige profundas mudanças, no sentido de se deter um processo especulativo que não tem condições de ser mantido. Aqui no Brasil, especialmente, país com as mais indecentes taxas de juros do mundo, mais do que em nenhum outro lugar, as necessárias e inevitáveis reformas que se impõem trarão conseqüências graves para a acumulação predatória do mundo financeiro.
Até mesmo o propalado sucesso dos fundos de pensão fechados – envolvendo trabalhadores de uma mesma empresa ou setor, e contando com o patrocínio dos empregadores – deve ser visto com cuidado. Além das incertezas de um mercado financeiro viciado e deformado, tudo depende do futuro empresarial das corporações co-financiadoras, sujeitas às crises e instabilidades inerentes à competição capitalista. Exemplos como os da Enron ou da Panam, nos Estados Unidos, ou do Aeros – das empresas de aviação brasileira –, deixam claro que é um equívoco atrelar o futuro do pagamento de pensões e aposentadorias à vida orgânica de empresas, sempre submetidas ao duro e cruel processo de competição capitalista. Os trabalhadores da extinta Varig, por exemplo, sabem muito bem o que isso significa.
Apesar de todas essas evidências e impulsionado pela ganância do sistema financeiro, há mais de duas décadas se construiu no Brasil uma poderosa campanha com o intuito de se desmoralizar o absolutamente viável esquema da previdência social pública, baseado no regime de repartição.
Apesar de serem os superávits do Orçamento da Seguridade Social os principais financiadores dos déficits do Orçamento do Tesouro – provocados pelo pagamento de juros –, o que se propala é a ocorrência de um falso déficit previdenciário, ignorando-se as receitas constitucionais da seguridade social e se naturalizando as despesas financeiras da política monetária, como se fossem inexistentes ou um não problema.
E agora, a aventura do regime de capitalização chega ao universo dos servidores públicos federais, sob a batuta de Dilma Rousseff.
Como ocorre com o discurso oficial sobre o regime geral da previdência pública, alega-se a existência de déficit em torno de uma despesa constitucional, de obrigação do Estado, que é o pagamento de pensões e aposentadorias aos servidores, com recursos do Tesouro.
Ao mesmo tempo, propõe-se que a atual alíquota de contribuição dos servidores – de 11% sobre o total dos seus vencimentos – seja agora aplicada apenas até o valor de R$ 3.916,20, para a garantia do benefício previdenciário pelo governo. A partir desse valor, a alíquota a ser cobrada para os futuros servidores seria de 8,5%, e a receita destinada a fundos de previdência complementar, específico para cada um dos poderes, e administrado por instituições financeiras, autorizadas e registradas na CVM – Comissão de Valores Mobiliários.
Ou seja: apesar de um suposto déficit, institui-se a criação de uma alíquota menor de contribuição. E, prometendo-se uma maior segurança financeira para o pagamento, entregar-se-á uma massa de recursos significativa aos bancos e outras instituições financeiras.
O cumprimento da promessa ficará para um futuro longínquo, no tocante às pensões e aposentadorias dos servidores públicos civis federais, pois os militares foram mantidos de fora dessa aventura.
Não sem razão, os magistrados, através de suas associações representativas, já se preparam para discutir a inconstitucionalidade desse projeto no STF. Enquanto isso, os bancos e instituições financeiras do “mercado”, lógico, apenas comemoram essa verdadeira fraude previdenciária.
No afã de se apropriar dessa significativa parcela da poupança previdenciária dos servidores públicos federais – e que, com certeza, chegará às esferas estaduais e municipais –, o grupo Itaú/Unibanco, na véspera da irresponsável votação realizada na Câmara de Deputados, não se furtou em, através de nota do seu departamento econômico, defender explicitamente a aprovação do projeto. Faz todo sentido.
Fonte: Correio da Cidadania