O presidente e seus aliados fazem o que nem a ditadura fez: não escondem que a ideia é ‘enquadrar’ o Supremo e enfraquecer a democracia para os seus interesses
O que diferencia a proposta do presidente Jair Bolsonaro (PL) de aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) do que a ditadura militar fez ao baixar o Ato Institucional número 2? E em termos institucionais, a proposta de Bolsonaro é mais grave ou menos grave do que o promovido pelos militares em 1965?
A primeira das diferenças: a justificativa formal para o aumento do número de ministros durante a ditadura era a alegada necessidade de ampliar a força de trabalho no STF para lidar com a quantidade crescente de processos que chegava ao tribunal.
O assunto foi debatido publicamente. Ministros do Supremo se manifestaram à imprensa da época contra a ampliação da Corte. Estudos foram feitos e publicados para demonstrar que o tribunal não precisava de mais ministros. Um desses materiais foi assinado por Victor Nunes Leal, que depois seria cassado. O então presidente do Supremo, Ribeiro da Costa, classificou a medida como “inconveniente e inútil”.
Castelo Branco sabia que Roosevelt tentou empacotar a Suprema Corte americana para levar adiante o seu New Deal. Mas nunca manifestou que a ideia por trás do aumento do número de ministros era reduzir a influência dos juízes que já estavam no tribunal, indicados por governos anteriores. Guardou certo pudor institucional, mesmo com proposta tão grave.
Quando Castelo Branco convidou um daqueles que indicaria para o tribunal a fim de preencher as novas vagas, explicou as suas razões para ampliar o número de ministros. Disse, em suma, que queria oxigenar o tribunal composto naquela época pelos “velhos”, como um dos novos ministros se referia aos ministros que compunham a Corte.
Bolsonaro e seus aliados não esconderam o que está por trás da ideia. Fizeram o que nem a ditadura fez. Eles confessaram detalhadamente suas intenções, disseram que a ideia era diluir o poder dos atuais ministros. E deixaram ainda no ar um quê de chantagem ao dizer que podem abandonar a ideia, mas desde que o Supremo se comporte como eles acham que o STF deve se comportar. E essa domesticação do tribunal envolve, evidentemente, não impor limites ao que o governo queira fazer ou deixar de fazer.
Bolsonaro não poderia sacar a desculpa de que o tribunal precisaria de mais julgadores para reduzir o estoque de processos. Porque o acervo processual do STF caiu sensivelmente nos últimos anos em razão dos filtros impostos pela legislação – como a necessidade de repercussão geral dos recursos – e da ampliação do plenário virtual, que hoje é um dos principais instrumentos do Supremo para ampliar o número de decisões.
O vice-presidente da República e futuro senador, Hamilton Mourão, afirmou que a proposta se justificaria pelo que chama de ativismo judicial – sem detalhar a que decisões está se referindo. O mesmo afirmou o deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, em entrevista à Globo News. Enquadrar o judiciário – e foi essa a expressão que usou – seria necessário para enfrentar o ativismo político do tribunal.
“O ambiente é o que define a possibilidade da mudança. Então, se o Judiciário permanecer neste nível de ativismo político, com decisões tomadas por gostar ou não de determinado governo, ou por querer ou não ter mais poder, ou por pensar numa ditadura do Judiciário, que acham que pode ser alcançada, isso vai ter reação do Poder Legislativo de forma muito severa”, disse Barros.
Uma segunda diferença. Castelo Branco, desde o início do seu mandato, resistiu a interferir no Judiciário. Ele, inclusive, fez questão de visitar os ministros do Supremo logo depois do golpe militar – e cumprimentar inicialmente aqueles que seriam alvos em potencial dos militares, os ministros indicados por João Goulart, que fora apeado do poder.
O Ato Institucional 2 foi uma resposta à pressão crescente por parte dos militares para que mudanças fossem promovidas no Supremo. Mudanças que tinham o intuito de colocar o STF em sintonia com a “revolução”. E foi também uma forma que o presidente Castelo Branco encontrou para não adotar medidas mais severas contra o STF, como a cassação de ministros – o que era uma demanda de militares e também de parte da imprensa. O que acabou sendo feito anos depois pelo Ato Institucional 5, no governo Costa e Silva.
Bolsonaro também visitou o STF assim que eleito, ainda em 2018. Encontrou-se com o então presidente do tribunal, Dias Toffoli. Mas não com os demais integrantes da Corte. Bolsonaro não está sob pressão de militares ou de aliados para intervir no Supremo. A ideia de atingir o tribunal parte dele próprio e é ecoada por aliados.
Bolsonaro também não repele a ideia de retirar ministros do Supremo. Não teria poderes para isso como dispunham os militares. Mas esperaria contar com seus aliados no Congresso para retirar do STF ministros com os quais não concorda, a começar por Alexandre de Moraes, de quem já pediu o impeachment ao Senado, mas sem sucesso.
Entretanto, o simples fato de submeter ao Congresso um pedido formal de impeachment de ministros do Supremo não compatibiliza a iniciativa com a Constituição. O impeachment é precipuamente um processo político com aspectos jurídicos adicionais e pode ser usado de maneira abusiva (inclusive com o apoio do Legislativo). Se Bolsonaro tiver apoio político, pode superar a exigência de os argumentos jurídicos sólidos necessários para justificar uma acusação por crime de responsabilidade contra ministros do STF.
Há mais: se Bolsonaro pedir o impeachment de Alexandre de Moraes, por exemplo, estenderá esta acusação contra os juízes que votaram para referendar diversas das decisões do ministro na condução dos inquéritos de fake news e contra atos antidemocráticos e que são alvo de crítica do presidente da República e seus aliados? Fosse outro o seu alvo — e ele ameaçou pedir o impeachment do ministro Luís Roberto Barroso —, qual seria o argumento? Discordância do mérito das decisões? E o mérito de uma decisão judicial poderia embasar pedido de impeachment de um integrante da Corte?
A ditadura militar perseguiu ministros indicados por governos anteriores – Evandro Lins e Silva e Hermes Lima foram indicados por João Goulart e Victor Nunes Leal foi nomeado por Juscelino Kubitschek. Os três foram cassados.
Os dossiês elaborados por órgãos de inteligência das Forças Armadas para embasar as decisões de cassar esses juízes indicavam que eles concederam decisões em favor de opositores à ditadura. De fato, mas várias dessas decisões foram referendadas pela maioria da Corte. Em alguns casos, pela unanimidade do tribunal. Entretanto, para os planos da ditadura, atingir apenas estes ministros seria o suficiente.
Uma terceira e também fundamental diferença. Os militares ampliaram o número de ministros e depois cassaram juízes do tribunal porque o país estava vivendo um período de exceção. Numa ditadura, o governo de fato não encontrava limites na Constituição, no Congresso ou no Judiciário.
Bolsonaro considera aumentar o número de ministros do Supremo em plena democracia e com o apoio do Congresso Nacional. E, novamente, não é porque a proposta conta com o apoio político de uma maioria que ela automaticamente se torna legítima democraticamente. Neste caso, inclusive, aquele que poderia impor limites à inconstitucionalidade da proposta seria justamente o Supremo. Mas haveria condições institucionais para o STF derrubar esta emenda à Constituição?
Delimitadas as diferenças, surge a semelhança fundamental. A proposta de Bolsonaro e o Ato Institucional número 2 têm no cerne a mesma raiz: são intervenções indevidas sobre outro poder, rompem com a separação de poderes e buscam minar a instituição que guarda a Constituição com o intuito de instalar um governo em que os limites são definidos por quem governa, em que a Constituição se torna texto meramente decorativo.
Mas Bolsonaro tenta promover isso em pleno período de normalidade democrática. Quando candidato, em 2018, Bolsonaro disse algo semelhante. Mas passados quatro anos de governo, com conflitos e ameaças explícitas ao Judiciário, a bravata de então adquire contornos de realidade.
Castelo Branco baixou o AI 2 quando já estávamos sob uma ditadura. Ao verbalizar sua intenção, Bolsonaro revela querer domar o Judiciário em plena democracia. E um judiciário sem independência e sem suas garantias constitucionais não é compatível com democracia.
Como dizia o ministro Aliomar Baleeiro, indicado por Castelo Branco para uma das vagas criadas pelo AI 2, quando se parte para um cenário de medidas excepcionais e ataques ao Judiciário, o que passamos a ter é um tribunal manco – porque debilitado institucionalmente – tentando proteger o coxo – a democracia enfraquecida pelos poderes majoritários que revelam pouco ou nenhum compromisso com a Constituição.
E Bolsonaro deixou explícito – com o coro do vice-presidente e de seu líder na Câmara – que é isso o que está em jogo.
Crédito: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil
Fonte: jora.info com edição da comunicação do SEEB de Santos e Região no título e olho
Escrito por: Felipe Redondo