“O maior agressor é o governo brasileiro”, denuncia presidente do Conselho Indigenista Missionário durante apresentação de relatório. Escalada de violência contra indígenas pode ser comparada à invasão de colonizadores, aponta estudo
O governo Jair Bolsonaro prometeu e cumpriu: não demarcou um milímetro de terra indígena, acirrou os ânimos de fazendeiros que se sentiram autorizados até mesmo a criar o “dia do fogo”, desmontou programas de saúde dos povos indígenas, estruturou a Funai para atender interesses privados, estimulou disputas ao desprezar a importância de preservar a terra e os que vieram antes, autorizou em discursos e políticas públicas o abandono e genocídio dos povos indígenas.
O relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), organização vinculada à Confederação Nacional de Bispos do Brasil da Igreja Católica, “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, lançado nesta quarta-feira (30), mostra exatamente como a chegada da extrema direita ao poder representou o ataque do direito à terra e à existência dos povos indígenas, com políticas que servem ao agronegócio e à mineração, e desrespeitam, de saída, a Constituição em seus artigos 231 e 232. “O maior agressor dos povos indígenas é o governo brasileiro”, declarou o presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, no evento de lançamento do relatório.
A violência que, como mostra o relatório, cresceu em suas múltiplas formas e frentes se dá por excesso ou falta: o extermínio do indígena pelo avanço explorador e o não respeito à demarcação de terras que, constitucionalmente, é um direito, na mesma medida em que o acesso aos direitos fundamentais, como o da saúde e o de existir, são atacados.
Foto: Denise Stabova/Divulgação Cimi
Em 2019, 113 indígenas foram assassinados, ou 9 por mês. A disputa de terra está no centro desse debate e tem, antes da morte, alguns estágios de violência como a ameaça, agressão e discriminação. Foram registrados 276 casos de algum tipo de violência no ano passado, número maior que o dobro do registrado em 2018, que foi 110, um aumento de 150%.
Os dois estados que mais registraram assassinatos foram Mato Grosso do Sul (40) e Roraima (26). Uma das mortes mais emblemáticas aconteceu em novembro, quando Paulo Paulino Guajajara foi assassinado em Arariboia (MA) em uma emboscada.
Para Roberto Liegbott, coordenador do Cimi Sul, estamos diante de uma “antipolítica indigenista”. Um dos elementos mais gritantes, na visão de Liegbott, foi o discurso de que o “indígena quer se integrar à sociedade”, frase dita por Bolsonaro, e que amparou, por exemplo, a estruturação do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos.
“É a ideia de que os povos indígenas só poderão ser sujeitos de direito se eles se integrarem à sociedade nacional. Retoma a perspectiva integracionista da ditadura militar. você rompe com qualquer perspectiva de direitos: você desconstitucionaliza, tira deles os direitos, você desterritorializa e tira a possibilidade de demarcação e propõe como alternativa a assimilação, a integração a sociedade. Na prática, é a política do genocídio”, avalia.
Algumas lideranças que participaram da divulgação dos dados manifestaram repúdio aos recentes ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro que acusou em discurso na ONU os indígenas e quilombolas de serem os responsáveis por incêndios criminosos que têm consumido os biomas brasileiros, em especial o Pantanal. Essas lideranças frisaram que o grande responsável pelo fogo é o agronegócio. E os números comprovam isso.
As invasões a territórios indígenas para exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio aumentou 134,9% de 2018 para 2019: foram 109 casos registrados contra 256. No ranking das motivações que levaram aos conflitos estão, logo após a simples definição de “invasão”, com 208 registros, os seguintes elementos: exploração ilegal de madeira/desmatamento (89), garimpo e exploração mineral (39) e fazendas agropecuárias (gado, soja e milho) (37).
Foto: Ibama/Divulgação Cimi
Das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) têm alguma pendência do Estado para finalização do seu processo demarcatório. “Desde 1991, o meu povo já lutava pelo nosso território. Até agora nada foi feito. Em 2019, um grande incêndio destruiu parte de nossos hectares, especialmente o local das castanheiras. Nós vivemos sob ameaça. Antes eram por posseiros, agora é até mesmo por parlamentar”, denunciou Maryelza, liderança do povo Apurinã do município de Boca do Acre.
Outro elemento que chama a atenção é a mortalidade infantil (crianças de 0 a 5 anos), que saltou de 591, em 2018, para 825 no ano passado, um aumento de 39,5%. Chamam atenção os registros de 248 casos no Amazonas, 133 em Roraima e 100 no Mato Grosso.
Embora o relatório diga respeito ao ano de 2019, na live de lançamento dos dados um minuto de silêncio foi pedido pelos organizadores pelos mortos pela Covid-19.
O tripé genocida
Desterritorializar, desumanizar e desassistir. Esse seria o tripé genocida que tem sustentado as políticas do governo federal para os povos indígenas. Em entrevista ao Projeto SOLOS, Roberto Liegbott, coordenador do Cimi Sul, destaca que o relatório deste ano procurou destacar aspectos das violências que vêm se tornando cada vez mais evidentes com Bolsonaro no poder. Um deles é a ideia de que os direitos indígenas são regalias.
Exploração madeireira | Foto: Felipe Werneck/Ibama/Divulgação Cimi
“O governo alega que as terras indígenas são em demasia. Há uma iniciativa permanente no sentido de fomentar essa ideia do privilégio na perspectiva da desconstitucionalização desses direitos. As terras indígenas são patrimônio público, são terras da União e não deveriam ser tocadas. Mas ele [o governo] transforma o seu órgão público [a Funai] para atuar na prática para defender interesses da iniciativa privada”, explica.
Liegbott afirma que essa situação abre caminho para uma série de violências consecutivas decorrentes dessas desterritorialização que acaba por liberar os territórios, que seriam dos indígenas por direito, para exploração madeireira, agrária, para o garimpo.
“Você autoriza a coisas, por exemplo, como o dia do fogo feito por madeireiros com o intuito de explorar, esse avanço descomunal de desmatamentos e incêndios. Tudo avalizado pela Funai”, destaca.
Área desmatada para garimpo | Foto: Christian Braga/Greenpeace/Divulgação Cimi
A morte dos indígenas pode ser avaliada em duas frentes: os assassinatos por conflitos de terra e o desmonte de políticas de assistência e acesso ao básico.
“Tem a ver também com a perspectiva de falta de possibilidade de se pensar e planejar o futuro. Porque muitas realidades de confinamento de povos como é o caso do Mato Grosso do Sul, nas reservas de Dourados e de Amambaí, no sul do Brasil que tem reservas superpopulosas, entre os kaingang. Nesse caso, você tem o avanço da violência de confinamento, de muitas famílias dentro do mesmo espaço territorial”, explica.
O esvaziamento dos órgãos de assistência, em especial no campo da saúde, com a extinção do Mais Médicos, na visão de Liegbott também é um fator que vulnerabilizou ainda mais a população. “Esse programa assegurava a presença médica nas aldeias. Você tinha uma assistência primeira, básica. Com o rompimento do programa, deixa de ter o médico. Concomitante com isso, ele colocou sob suspensão todos os contratos de prestação de serviços no âmbito da saúde e por 5 meses em 2019, suspendeu os recursos para a assistência de saúde, que ficou relegada àqueles indígenas que faziam atendimento emergencial, mas não havia nada preventivo”, explicou. Para ele, essa situação impactou diretamente o aumento da morte de crianças.
Vulnerabilidade e encarceramento
O encarceramento em massa no país sempre afetou a população mais vulnerável e, segundo o relatório, agora passa também a abarcar os indígenas. Entre 2017 até o ano passado houve um gradual aumento no número de presos: 738, 910 e 1.080. Em dois anos, o crescimento de indígenas no cárcere foi de 46%.
Foto: Denise Starbova/Divulgação Cimi
Para Roberto Liegbott, existe uma evidente vulnerabilidade social a que muitos indígenas acabam submetidos em cenários de precariedade. “O confinamento em reservas, de vida em acampamento de beira de estrada e áreas degradadas e uma relação muito próxima com a sociedade, traz para dentro das áreas o complicador que é a violência e a criminalidade. muitas pessoas acabam sendo afetadas pela violência que é transportada da nossa sociedade para dentro das aldeias”.
Mas não é só isso: existe uma equação de difícil conclusão que é como os povos lidam com a relação entre descumprimento de regras e punição. E, nesse sentido, a aplicação do Direito no nosso sistema Judiciário não contempla tampouco respeita o modo de ser e a cultura de cada povo. “Há mecanismos de controle e punibilidadade no âmbito das comunidades e que poderiam ser alternativa à prisão e ao encarceramento na nossa sociedade, porque cada povo tem suas regras, suas dinâmicas e o modo de punir ou coibir algum excesso ou violência. Isso não é levado em consideração pelo nosso sistema jurídico”, ponderou ao destacar a resolução 287 do Conselho Nacional de Justiça, que tenta estabelecer critérios antes do encarceramento de indígenas na sociedade.
Crédito: Denise Starbova/Divulgação Cimi
Fonte: Congresso em Foco, editado por Comunicação do SEEB de Santos e Região
Escrito por: *Maria Teresa Cruz, do Projeto SOLOS