Precarização invade casas, rouba tempo livre e impõe vida débito-crédito. O labor na Era Digital precisa ser regulado, mas também é essencial apostar em ações formativas, na reindustrialização e no cuidado, em busca de ocupação plena
O horizonte da centralidade da relação salarial perdeu força com a ruína da sociedade industrial. Há mais de três décadas, o ingresso passivo e subordinado na globalização foi acompanhado do reposicionamento do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho, interrompendo a industrialização nacional.
Com isso, a trajetória do assalariamento sofreu significativa inflexão, sobretudo no segmento dos empregados protegidos por direitos sociais e trabalhistas. A partir de então, o projeto de construção da sociedade centrada na valorização do trabalho que fora implementado pela Revolução de 1930 passou a ser fortemente atacado.
Exemplo disso foi o desaparecimento da dualidade que comandava a composição do governo federal demarcado pela polarização entre os ministérios da Fazenda, que articulava os interesses do patronato industrial, e o do Trabalho, que integrava a conveniência do mundo do labor. De um lado, o ministério da Fazenda passou a ser ocupado por representantes dos interesses especulativos e financeiros e, de outro, o ministério do Trabalho ficou cada vez mais enfraquecido e atarefado pelas emergências da falsa polarização neoliberal entre emprego ou direitos.
Neste primeiro quarto do século 21, por exemplo, o conjunto dos países se encontra repartido no mundo entre produtores e consumidores de bens e serviços digitais. No caso brasileiro, a decadência registrada no seu desempenho, que declinou para a 13° economia do mundo, se mostra incompatível com o posto de quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais.
O desequilíbrio entre a estrutura produtiva envelhecida e a modernização do padrão de consumo tem sido mantido pela via das importações de produtos com maior valor agregado e conteúdo tecnológico, financiados pela dependência do modelo primário-exportador. Em função disso, o tema do trabalho crescentemente secundarizado pela nova relação débito-crédito, fundada na captura dos rendimentos variáveis (programas públicos de transferências de renda, endividamento privado, ocupações gerais legais e ilegais, monetização das redes sociais e outras) se impôs sob novas dimensões.
A primeira se relaciona à reconceituação do trabalho diante do avanço da Era Digital. Diferentemente do que ocorria na sociedade industrial, o trabalho deixou de ser apenas uma expressão do que se realiza fundamentalmente fora de casa, em locais determinados (fábrica, escritório, banco, supermercado, canteiro de obra, lavoura e outros) e por tempo previamente definido.
A digitalização crescente da sociedade amplia cada vez mais o horizonte do trabalho que se encontra conectado em distintos locais e temporalidades. A escassa limitação regulatória ocorre paralelamente à intensificação e extensão do trabalho precário, cujo grau de exploração acompanha a sua desvalorização comparável à década de 1920.
Rovena Rosa/Agência Brasil
Como dimensão promotora e protetiva, a regulação do labor seria um novo diálogo temático com as reformas trabalhista de 2017 e previdenciária de 2019 – a definição do padrão mínimo aceitável de regras, representação coletiva e solução de conflitos para o conjunto do mundo do trabalho, para além do assalariamento formal.
Na dimensão educacional e formativa, é necessária a reorganização das bases qualificadoras do trabalho atualmente existentes para atender ao longo da vida. A responsabilidade compartilhada tripartite constitui o elemento convergente com a redefinição formativa da identidade e pertencimento no mundo do trabalho.
Tudo isso converge com as novas fontes possíveis geradoras de ocupação. O dinamismo que ocorre com a reindustrialização e a reestruturação geral dos serviços de cuidado pode abrir a nova oportunidade da plena ocupação no Brasil.
Tudo isso está no horizonte de possibilidades teóricas. A sua conversão em realidade implica em compreender o trabalho de forma holística, com maioria política organizada. Do contrário, a relação salarial prosseguirá perdendo a centralidade no interior do mundo do trabalho.
Por Marcio Pochmann – Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.
Crédito: Márcio Pochman/Outras Palavras
Fonte: OUTRASPALAVRAS
Escrito por: Marcio Pochmann