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Negacionismo científico e seus efeitos na saúde do Brasil

29 de novembro de 2022

A crise de oxigênio em Manaus foi o momento mais agudo de uma série de ausências do Estado brasileiro na pandemia

No dia 14 de janeiro de 2021, quando tornou-se pública a crise de falta de oxigênio na cidade de Manaus, que levou à morte de mais de 30 pessoas por asfixia em apenas dois dias, o governo federal já tinha conhecimento da extensão dos problemas. E nada – ou quase nada – fez. A crise de oxigênio em Manaus foi o momento mais agudo de uma série de ausências do Estado brasileiro na pandemia. Em diversos momentos e em diversos lugares, faltaram não apenas oxigênio, mas equipamentos básicos, como máscaras e luvas ou respiradores. E não foi apenas na pandemia de covid-19. Nos estoques do país hoje, faltam medicamentos para doenças como Aids, câncer, hepatite.

 

Embora a grande maioria da população brasileira tenha demonstrado crença na ciência e na eficácia das vacinas, há uma minoria que desdenha delas. Uma minoria que inclui o atual presidente Jair Bolsonaro, que não se vacinou. Em função desse problema, outras doenças que também são preveníveis com vacinas, como a poliomielite, voltam a ameaçar o país. A crônica do negacionismo mostra os seus efeitos deletérios. O Brasil, que tem 2,7% da população mundial, concentrou 13% das mortes por covid no mundo. Já são mais de 680 mil vítimas da doença no país.

 

Mau exemplo e descoordenação

O que aconteceu no país nos últimos anos e colaborou para que se agravasse muito mais a tragédia da pandemia é, na opinião do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, integrante do grupo de transição na área de saúde do governo de transição, um misto de discurso, mau exemplo, falta de ação e descoordenação do governo federal como indutor do processo.

 

Com Jair Bolsonaro, o país teve no seu comando alguém que primeiro não acreditou na gravidade da pandemia. E que depois não acreditou na eficácia do remédio que desde o século 18 a ciência já sabe ser o mais eficaz para combater doenças virais como a covid: a vacina. Alguém que preferiu confiar mais em charlatanismos como a cura com cloroquina.

 

O caso de Manaus é emblemático nesse sentido. Primeiro, Bolsonaro desestimulou Wilson Lima (PSC), seu aliado, a manter fechado o comércio na cidade. Com a abertura, o vírus circulou sem barreiras. Acabou sendo produzida uma variante mais contagiosa e letal. As dificuldades geográficas do Amazonas dificultam o transporte de qualquer produto, e isso inclui o oxigênio. Assim, o estado dependia da produção da fábrica local da White Martins, que produzia 25 mil metros cúbicos de oxigênio por dia. Com o agravamento da pandemia, a demanda subiu para 75 mil metros cúbicos. E a saúde de Manaus entrou em trágico colapso.

 

Na avaliação de Chioro, o que houve em Manaus repetiu-se em menor escala em diversos casos. “O abandono do complexo econômico/industrial da saúde, que vinha sendo construído ao longo dos últimos 15 anos, em parceria com instituições públicas, universidades e o setor privado, a destruição da condução dessa política nos colocou nessa situação de absurda vulnerabilidade durante a pandemia, ao ponto de faltar equipamentos de proteção individual básicos (máscaras, gorros, luvas), de faltar oxigênio, de faltar respirador, de faltar medicamentos indutores para intubação orotraqueal. Quer dizer, chega a ser inaceitável. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, em 73% dos municípios hoje faltam medicamentos básicos. E o Ministério da Saúde age como se não tivesse nada a ver com ele”, avalia Chioro.

 

Um desmonte que se reflete em outras áreas, como as universidades. Para o ex-ministro da Saúde, se não tivesse havido a pandemia, muito provavelmente as universidades  públicas brasileiras teriam entrado em colapso com os profundos cortes sofridos nas suas verbas de custeio (os recursos necessários para manter o seu funcionamento, pagar salários, contas de água, luz, etc). O período sem turnos presenciais acabou fazendo com que as universidades economizassem nesse ponto podendo manter suas atividades. “É inacreditável o que a gente está vivendo nos últimos quatro anos”, conclui.

 

Falta de soberania

Para Chioro, outro problema que a pandemia tornou evidente é que sem investimento em conhecimento não há como o Brasil almejar uma saúde de qualidade. “Para um país ter soberania, para que ele esteja preparado para um evento como esse que a gente viveu, é preciso que ele invista”, considera.

 

Na avaliação de Chioro, toda a estrutura por décadas montada no Sistema Ùnico de Saúde (SUS) torna o Brasil um país vigoroso em saúde pública. Tanto que conseguiu mesmo ultrapassar todas as dificuldades colocadas pelo governo Bolsonaro e avançar no combate à covid. “O nosso setor produtivo na área de medicamentos, imunobiológicos, vacinas, etc, é muito vigoroso. Tanto as indústrias nacionais quanto as internacionais que estão aqui colocadas no Brasil. As nossas universidades e os nossos institutos de pesquisa, como são o caso da Fiocruz e do Butantan, têm um enorme potencial. O que a gente precisa é retomar o fator de indução. É recolocar esses atores em diálogo e retomar as políticas, claro que aperfeiçoando alguns aspectos”, considera o ex-ministro.

 

Discursos e ações

Para o infectologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul, os prejuízos provocados por Bolsonaro no desenvolvimento científico e tecnológico e na saúde são consequência dos impactos de duas coisas. Primeiro, o discurso do presidente. Depois, as suas ações.

 

“O presidente ainda está colocando em dúvida a eficácia das vacinas”, comenta, primeiro destacando o efeito do discurso. Segundo Pedro Hallal, as vacinas, após o início do processo de imunização, evitaram que o país tivesse um milhão de mortes a mais. “Quando o presidente questiona a vacina, ele está de uma forma ou de outra dizendo que, por ele, teriam morrido mais um milhão de brasileiros”, ataca Pedro Hallal. A entrevista de Hallal ao Congresso em Foco foi concedida em julho.

Em janeiro do ano passado, Hallal escreveu um texto publicado na revista científica The Lancet no qual alertava para os riscos do desmonte científico brasileiro: “SOS Brasil: Ciência sob ataque” (clique aqui para ler o original, em inglês). Hallal considera que, de lá para cá, até o desfecho final das eleições deste ano, a situação piorou. Tanto que ele voltou a escrever novo texto para a mesma revista The Lancet, agora com o título de “SOS Brasil: Democracia sob ataque”.

 

Pedro Hallal vai na mesma linha sugerida por Arthur Chioro: para que o Brasil recupere a sua capacidade e conhecimento para enfrentar no futuro desafios na saúde semelhantes à pandemia de covid-19 será necessário investimento e coordenação.

 

“O Brasil  tem coisas muito positivas para enfrentar uma pandemia. O Brasil tem um sistema de saúde forte. O Brasil tem um sistema de universidades que produz conhecimento rápido. O Brasil tem vários programas de pós-graduação de ponta em saúde coletiva, em epidemiologia de ponta mundialmente. O Brasil é sucesso mundial em vacinação, mesmo quando a vacinação é boicotada pelo próprio Palácio do Planalto. Agora, o Brasil tem dificuldades. O Brasil tem muita desigualdade. E o Brasil tem investimento reduzido em ciência e tecnologia e educação em saúde. Para que o Brasil esteja mais bem preparado para enfrentar os próximos desafios da saúde pública – eu não acho que serão as próximas pandemias, mas certamente teremos muitos desafios –, o Brasil precisa enfrentar esses problemas de base que não tem conseguido enfrentar nos últimos anos”, conclui Pedro Hallal.

Crédito: Altemar Alcântara/Secom Manaus
Fonte: Congresso em Foco
Escrito por: TIAGO RODRIGUES e RUDOLFO LAGO

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