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Miséria, desemprego e desigualdade são um projeto no Brasil

4 de junho de 2021

Paulo Guedes é um ministro da Economia que se diz liberal e um país com tragédias sociais evidentes, enquanto quase R$ 2 trilhões, em 2020, foram jogados direto nos bolsos dos banqueiros para rolagem, pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Lutemos por um país onde haja vacina no braço, comida no prato e dignidade para todos

Por José Carlos Garcia* 

“O gerente queria trazer gente que ‘trabalhe muito’ e que ‘não tenha medo de trabalho’, nas palavras de meu pai, ‘para dar suor na plantação’. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. (…) Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhe eram dadas.” (VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 1. ed., 2019, p, 41)

 

Rezam a lenda e a Constituição que, no Brasil, a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e que deve ter por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170).

 

A redução das desigualdades sociais e regionais deve ser princípio da ordem econômica (inciso VII), e reduzir as desigualdades sociais é um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, III).

 

Assim, o conceito originalmente católico de justiça social atravessa nossa Constituição, seja nos objetivos estruturantes da República, seja nos contornos da ordem econômica de mercado.

 

No entanto, a desigualdade social não está diminuindo no país. Em 2019, o Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH e passou para a 84ª posição, entre 189 países; nosso IDH até é considerado alto, mas somos o 8º país mais desigual do mundo, com índice Gini de 53,9, atrás apenas de África do Sul, Namíbia, Zâmbia, São Tomé e Príncipe, República Centro-Africana, Suazilândia e Moçambique.

 

O 1% mais rico da nossa população ganhava, em 2019, 33,7 vezes mais que os 50% mais pobres. É um dos maiores indicadores da série histórica: apesar de ter caído constantemente entre 2013 e 2016, voltou a subir, desde então.

 

Estes dados ainda não contemplavam a retração econômica decorrente da pandemia de Covid-19, que reduziu a ocupação sem compensação adequada por programas sociais que mantivessem a renda e o consumo dos estratos mais pobres.

 

Após um ano de pandemia, chegamos a um índice de desocupação de 14,4%, com queda de 4,1% do PIB. Mais de 14 milhões de pessoas perderam o emprego, e outras 6 milhões desistiram de procurá-lo, por falta de perspectivas.

 

Ao mesmo tempo em que os postos de trabalho escasseiam, os direitos são suprimidos: a reforma da legislação trabalhista, com a Lei 13.467/2017, legalizou o processo de precarização do trabalho, jogando ainda mais trabalhadores na informalidade – em 2019, 41,6% da força de trabalho, mais de 39 milhões de pessoas, estavam na informalidade.

 

Este índice sobe para mais de 62%, quando consideradas apenas as pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Não por acaso, domésticos (72,5%), agropecuária (67,2%) e construção (64,5%) são os ramos que mais concentram o trabalho informal.

 

Neoliberalismo

Há vários fatores estruturais e conjunturais que podem explicar esses dados, especialmente em um país com fortes heranças escravagistas como o Brasil. Mas um deles, sem dúvida, reside na hegemonia do pensamento neoliberal no mundo e, particularmente, por aqui.

 

Fala-se muito em neoliberalismo, mas o que efetivamente pregam os neoliberais? Um dos precursores do pensamento neoliberal, Friedrich Hayek, pode nos ajudar a elucidar essa questão.

 

Para Hayek, a desigualdade social é concebida como uma desigualdade de origem natural, que não pode ser modificada, e é a base da dinâmica de uma ordem de mercado.

 

Nesta ordem de mercado, as pessoas se posicionam exclusivamente segundo seus interesses e ganhos individuais, e seu desempenho relativo é visto como função de uma seleção natural, darwinista.

 

Exatamente por isso, a ordem de mercado é também natural e não tem uma finalidade em si mesma, não busca nenhum fim social. Sendo natural, qualquer modificação a partir de uma intervenção externa ao mercado (uma regulação pelo Estado, por exemplo) é impossível, e somente pode prejudicá-la.

 

Assim, a liberdade humana é exclusivamente ligada às limitações do poder do Estado frente ao indivíduo, e se exerce exclusivamente no mercado. Não existe aquilo que chamamos de liberdade política, ou cidadania.

 

Precisamente por isso, a democracia é um regime preferível para o mercado, mas não indispensável ao seu funcionamento (e, portanto, à liberdade), e é perfeitamente possível a defesa dessa liberdade do e no mercado por regimes autoritários.

 

A ideia de justiça social, ou distributiva, nesse contexto, não é apenas equivocada: é uma expressão “desonrosa, do ponto de vista intelectual, símbolo da demagogia ou do jornalismo barato”, e “o evangelho da ‘justiça social’ visa a sentimentos muito mais sórdidos: a aversão aos que estão em condições melhores, ou simplesmente a inveja, essa mais antissocial e nociva de todas as paixões”.

 

Pior: “a exigência de que deveríamos ter igual consideração por todos os nossos semelhantes é incompatível com o fato de que todo o nosso código moral se baseia na aprovação ou desaprovação da conduta dos demais; e que, da mesma maneira, o postulado tradicional de que todo adulto capaz é, antes de tudo, responsável pelo próprio bem-estar e o de seus dependentes – significando que não deve, por sua própria culpa tornar-se um fardo para os amigos ou companheiros – é incompatível com a ideia de que a ‘sociedade’ ou o governo devem dar a cada pessoa uma renda adequada.” (HAYEK, Friedrich. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985, v. 2, pp. 118-121).

 

Nestas cores, não fica tão difícil entender porque um ministro da Economia que se diz liberal é tão ligado ao Chile de Pinochet, cuja ditadura foi o primeiro laboratório das teses econômicas neoliberais dos Chicago boys – e onde a tragédia social, especialmente após sucessivas reformas da Previdência e do trabalho, são evidentes.

 

Renda mínima

Entende-se, também, porque não há verba suficiente para criar mecanismos compensatórios razoáveis para assegurar renda mínima e emprego durante a pandemia, mas mais de 50% do orçamento da União, quase R$ 2 trilhões, em 2020, foram jogados direto nos bolsos dos banqueiros para rolagem, pagamento de juros e amortizações da dívida pública.

 

A miséria, o desemprego e a desigualdade social, no Brasil, não são um erro ou uma disfunção. São um projeto. E um projeto que vem dando certo, ao longo dos séculos.

 

Apoia-se ativamente em enorme programa de transferência de renda, dos mais pobres para os mais ricos, através de um sistema tributário regressivo, da desregulamentação das relações de trabalho, do comprometimento dos recursos públicos para saúde e educação com o pagamento de juros pesadíssimos para o sistema financeiro, e do desmonte da administração pública.

 

Apoia-se na ideologia de que tudo que é público e social é ruim e mau, e que só o deus mercado salva. E é assegurado pela crescente violência policial contra os pretos pobres das periferias e os movimentos sociais, mesmo quando, para isso, é preciso subverter as famosas hierarquia e disciplina que se alega articularem os setores policiais militarizados.

 

Este projeto, como se vê, não apenas não cumpre a Lei e a Constituição – negam-nas e violam-nas abertamente, inclusive com discursos golpistas.

 

Deixadas livres, pelo neobarbarismo falsamente moderno do pensamento neoliberal, à sua atávica sanha patriarcal, racista e escravagista, as melhores tradições da elite econômica e do Estado brasileiros não nos levarão a nenhum lugar, senão ao desolador cenário que abre este texto, descrito em Torto Arado.

 

Quebremos essa tradição. Lutemos por um país onde haja vacina no braço, comida no prato e dignidade para todos, e onde as marcas da passagem das pessoas pela terra não sejam medidas pela contagem de vítimas da pandemia – em 02/06/2021, 465.199 pessoas mortas.

 

Para entender melhor, segue uma recomendação de leitura:

GARCIA, José Carlos. “Neoliberalismo e democracia”. Direito, Estado e Sociedade. Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n. 13, pp. 69-88, ago-dez, 1998. Disponível em https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/issue/view/42.

 

*José Carlos Garcia – Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Crédito: EBC
Fonte: Brasil de Fato

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