Para premiado cineasta britânico, Bolsonaro, Trump, Netanyahu e Johnson se equivalem na falta de projeto de futuro. Mas dimensão ambiental sob a guarda do presidente brasileiro o torna mais perigoso
Quando vai começar o dia em um novo trabalho, o “associado” é saudado pelo encarregado da empresa, que explica as regras do serviço e afinal estende ao rapaz uma garrafa PET vazia, dizendo: “Essa é a coisa mais importante de todas”. O rapaz se espanta: “O que é isso?”. “É para você mijar enquanto faz as entregas”, responde o encarregado. O novo motorista, ofendido, joga a garrafa fora, mas, ao longo da história, ele descobrirá que aquele tinha sido um conselho útil: o tempo para as necessidades fisiológicas passará a ser um luxo em sua nova jornada de “empreendedor”, como ele mesmo chama seu novo emprego de motorista/entregador/conferente em uma van e sem plano de saúde, sem seguro de acidentes, sem horário para começar e terminar, sem perspectiva de avanço social. Essa é uma das cenas iniciais de Você não estava aqui (Sorry, we missed you), o novo filme do cineasta britânico Ken Loach, que estreia neste final de semana no Brasil.
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Um dos mais combativos e admirados diretores europeu se debruça, dessa vez, sobre uma praga contemporânea que aflige todos os trabalhadores do mundo nesse momento: o trabalho sem vínculos e de responsabilidade unilateral, o cerne da gig economy (ou economia uberizada, com chamamos por aqui). Em um período curto, especialmente após a crise de 2008, a deterioração do trabalho, os empregos inseguros, estressantes, sem seguro social, com jornadas desumanas, estão cobrindo todo o planeta com sua infâmia.
“É uma história que muita gente conhece, e vive, mas não fala a respeito. É quase um tipo de segredo”, disse, em entrevista por telefone ao Farofafá, o cineasta Ken Loach, de 83 anos. “Isso se dá porque foi uma mudança que aconteceu gradualmente nos últimos 10, 12 anos. Aos poucos, foi aumentando a carga horária de trabalho, os trabalhadores passaram a pagar pelas folgas, ficavam doentes e não tinham atendimento e os empregos foram sendo eliminados. Os empregadores passaram a adotar tecnologia maciça, só que para ganhar mais dinheiro, não para melhorar as condições de trabalho. É o que sempre fizeram, mas o impacto foi maior nas famílias, tornaram-se estressadas, sem perspectiva”, analisou o cineasta.
Ken Loach é um dos diretores de cinema mais engajados politicamente da atualidade. Fez filmes memoráveis sobre a guerra civil espanhola (Liberdade e Luta) e sobre a revolução sandinista (Uma canção para Carla). Em 2006, recebeu a Palma de Ouro do 59º Festival de Cannes, na França, por Ventos da Liberdade. Em 2016, voltou a ganhar, dessa vez por Eu, Daniel Blake, que fez verter muitas lágrimas nas salas de cinema do Brasil.
Loach segue absolutamente firme no front em sua nova obra. O cineasta acredita que os “pesadelos” representados por Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro são parte de um mesmo fenômeno global. “É muito perigoso. Está na Índia, com Nahendra Modi. Na Itália, com Salvini. Em Israel, com Netanyahu. Na Polônia, na Espanha, com o partido Vox. Eles são inúteis, não apontam para nada. Mas são perigosos, especialmente agora, porque há a emergência climática. Jair Bolsonaro, por exemplo, não é perigoso apenas para vocês, brasileiros. Ele é perigoso para o mundo todo. Mudar essa situação é uma emergência política mundial”.
Trailer de Você Não Estava Aqui, novo filme de Ken Loach
Sua nova obra é fundada numa observação sobre a mudança no mundo das relações trabalhistas. Na última década, a economia de serviços estabeleceu-se como uma das principais fontes de empregos, e esses empregos, quase todos erguidos sobre uma teia de precariedade, se revelaram inseguros, frágeis, estressantes, desumanos em sua maioria. A consequência disso, que ninguém encara explicitar, é que as famílias estão se desintegrando, as relações humanas entraram em declínio.
O novo filme de Ken Loach, mesmo concentrado no esforço de transmitir essa realidade, o faz com um timing admirável de narrativa, de interpretações, de situações paralelas, de tensões internas dos personagens. Que são, além do motorista Ricky (Kris Hitchen) da cena descrita no início desse texto, sua mulher, a cuidadora de idosos Abby (Debbie Honeywood) e o casal de filhos, Seb (Rhys Stone) e Liza Jane (Katie Proctor).
É um filme bastante superior a Eu, Daniel Blake (2016), sua produção anterior (também realizado em Newcastle), devido à dramaturgia. O ar de estupefação do motorista Ricky encarna o espanto de todo o trabalhador que descobrirá, do dia para a noite, que não tem mais aposentadoria, não tem mais SUS, não tem mais FGTS, não tem mais Justiça do Trabalho, não tem mais nada, nem um País. “Eu escolhi Newcastle porque é uma parte especial da Inglaterra. É cheia de velhas fábricas, minas de carvão, navios, aço. Também é um lugar com fortes cultura e identidade, um povo muito especial. Com o colapso das indústrias, a economia casual cresceu e mudou tudo, colocou a classe trabalhadora em crise. Também é um lugar ótimo para filmar, porque não é tão grande quanto Londres, temos mais controle da produção, é um lugar mais amistoso”, explicou.
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O cineasta diz que é difícil encontrar retratada, na imprensa internacional, essa realidade que ele expõe. A mídia, quase num uníssono, tenta fazer com que o custo humano da nova economia uberizada seja aceito pelos trabalhadores como uma decorrência natural de sua falta de especialização ou sua defasagem tecnológica. Ou seja: incute culpa para colher (oportuna) vassalagem. Os estados nacionais, os governos, cooperam com essa situação relacionando a precarização do trabalho a uma inevitável austeridade nas contas públicas. Por conta disso, começam a surgir no cotidiano cenas como a do entregador de iFood com a bolsa térmica nas costas tentando vencer o temporal e a enxurrada numa rua de Belo Horizonte, durante uma inundação, para seguir seu trabalho de entregas. Se ele não o completa, não recebe.
Os trabalhadores do filme de Loach não são idealizados, sem defeitos. Ricky tem uma queda pelo álcool e é inepto para muitas coisas. Abby, sua mulher, é humilde quase ao ponto da servidão (as famílias negligentes de idosos se aproveitam dela). Mas o diretor questiona fundamentalmente a ideia de supremacia social e profissional, o conceito de êxito e de satisfação existencial. Ricky e sua família, embora tolhidos pela violência da nova ordem, mantém uma dignidade e uma doçura nessa tragédia que realçam sua grandeza humana. Há um pouco de Little Miss Sunshine na presença de Liza Jane, a caçula da família, a pessoa mais razoável, quase a mais madura e equilibrada de todo o grupo.
A família de Ricky se vê obrigada a lutar em uma batalha já perdida. É uma tragédia em progresso. Ken Loach, como de hábito, não doura a pílula. Ele estima demais suas personagens comuns, de vidas ordinárias, e vai amá-las até o fim, mesmo após seu colapso, e é exatamente aí que está a grandeza de seu cinema. A diferença entre o Coringa, por exemplo, é que os deserdados de Loach não estouram jamais em fúria. “Paul Laverty (roteirista de Loach) criou a história a partir de muitas entrevistas com trabalhadores em diversos lugares. Ele vive na Escócia. São pessoas normais que levam vidas normais e encaram uma realidade brutal”, conta o diretor. “Muitos motoristas e cuidadoras de idosos que ouvimos para compor os personagens não quiseram que os nomes saíssem nos créditos porque temiam perder seus empregos”.
Apesar da doçura de seus personagens, Ken Loach segue acreditando na revolução. “As pessoas seguem iguais. Há raiva, alienação, desespero. Para que reajam, é preciso mostrar o que perderam, e é aí que costumava entrar as lideranças políticas. O problema que temos agora é que os líderes aceitaram essa situação, e daí aumentou o senso de desesperança, de perda de horizontes. É um problema político, é preciso entender e organizar a oposição. Não é um problema só do Brasil, é grande na Europa toda, por causa do uso da tecnologia em escala maciça”.
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Fonte: RBA – Rede Brasil Atual – 27/02/2020
Escrito por: Jotabê Medeiros