Por Bill Quigley
Nove meses depois, o Haiti continua como se o terramoto tivesse acontecido no mês passado. Nem um cêntimo da ajuda prometida pelos EUA para a reconstrução chegou ao Haiti.
Uma cidade de tendas.
“Se a situação piorar, um pouco que seja”, diz Wilda, uma mãe haitiana sem abrigo, “não sobreviveremos.” À sua volta, mães e avós concordam abanando solenemente a cabeça.
Estamos numa “tenda” onde o calor é abrasador, com um grupo de mulheres que tentam sobreviver com a família, num parque público. O parque que cerca toda a zona das traseiras do Palácio Nacional do Haiti, tem ao centro a estátua régia de Alexandre Petion. É agora a casa de 5.000 pessoas desalojadas na sequência do terramoto de Janeiro de 2010.
Nove meses depois do tremor de terra, mais de um milhão de pessoas continua sem casa no Haiti.
O Haiti continua como se o terramoto tivesse acontecido no mês passado. Visitei Port-au-Prince pouco tempo depois do terramoto e a maior parte da destruição que testemunhei então mantém-se nove meses depois.
A Associated Press dá conta que apenas 2 por cento do entulho foi removido, só 13 000 abrigos temporários foram construídos. Nem um cêntimo da ajuda prometida pelos EUA para a reconstrução, chegou ao Haiti. Nos últimos dias os EUA anunciaram que iriam aplicar 10 por cento dos mil milhões de dólares da ajuda prometida à reconstrução. Só 15 por cento da ajuda mundial prometida por diversos países e organizações chegou até agora ao país.
Com outros advogados dos CCR, MADRE, CUNNY Law School, BAI e do Institute for Justice and Democracy in Haiti encontro-me encolhido, apertado sob desbotadas lonas cinzentas estampadas com a expressão Ajuda dos EUA. Outras lonas azuis estão pregadas ao chão com estacas, a fazer de paredes. Ainda não é a estação quente mas o boletim meteorológico informa que o calor termómetro vai atingir os 46º.
O chão é de terra batida, amolecida por uma chuva recente. A nossa guia trabalha numa activa e popular organização de mulheres, a KOFAVIV1, que que está a fazer trabalho com mulheres de muitos acampamentos e que encoraja as residentes a contarem-nos as suas histórias.
Ana, tem sete filhos. O que ela gostaria mesmo era de ter uma tenda. Ela e a sua família vivem num pequeno pedaço de terra batida de 1 metro por 1 metro. Amarraram-se folhas a bocados de madeira para proteger do sol. Manga de plástico forra o chão. Quando chove, todos os seus pertences ficam encharcados. Mendiga todos os dias por comida.
Teresa tem três filhos de 12, 11 e 9 anos. Vive no acampamento desde o tremor de terra. Há algumas semanas, quando saiu para ir buscar um balde de água, foi agarrada e violada por um grupo de homens. Antes do terramoto, trabalhava como vendedora de rua, mas agora não tem dinheiro para comprar os produtos para vender. Reza todo o dia, todos os dias, por ajuda.
Carolina vivia com o marido e três filhos num apartamento na baixa de Port-au-Prince.
O sismo levou-lhe o marido e deixou o resto da família sem tecto. Foi violada no primeiro acampamento onde esteve instalada. Quando se mudou para outro, foi de novo violada e passou a lutar ao lado da KOFAVIV. Ela e outras mulheres montaram um esquema de alerta por apitos e sinais de luz para se protegeram umas às outras. Pressionaram a polícia a prender. A sua vida está agora em perigo porque os violadores a conhecem, e é vulnerável.
Ouvimos dezenas de outras mães e avós – Alana, Beatrice, Celine, Marcie, Rene, Wilda e outras. Eis o que elas nos contam.
Não há electricidade nos campos de desalojados. Alguns têm postes de iluminação que funcionam de vez em quando. Outros não tem iluminação nenhuma.
Não há comida. As crianças passam uma fome horrível. A ajuda alimentar acabou em Abril e nada surgiu em sua substituição. As autoridades cortaram a alimentação para que as pessoas abandonassem os acampamentos, mas para irem para onde?
É difícil encontrar água. Para as pessoas do Parque Petion, a água é distribuída por um camião num sítio central, um bloco ou dois adiante, no meio de vários acampamentos. Milhares de pessoas fazem bicha duas vezes por dia para conseguir água antes que ela se esgote. Num outro acampamento que visitámos no domingo, o acampamento Kassim, centenas de famílias estavam sem água e não estava prevista nenhuma distribuição, pelo menos até segunda-feira. Rapazes e raparigas fazem um ajuntamento em torno de um cano, alguns blocos mais adiante, tentando levar alguma água em baldes com o símbolo da Oxfam gravado.
As pessoas tossem, fungam, e têm os olhos a lacrimejar. Os bebés estão quase sempre quietos e silenciosos. Há pessoal médico variado, mas em geral só os doentes mais graves são observados, porque há imensa gente a precisar de auxílio. Nos acampamentos maiores agora já há casas de banho, mas não as suficientes. O escoamento das águas é um grande problema especialmente agora, durante a estação das chuvas.
Não é possível manter as crianças dentro das tendas sufocantes. Brincam no meio da lama. Gostariam de voltar à escola, mas não há dinheiro.
A segurança é um problema enorme. Menos de uma dúzia dos mais de mil acampamentos tem vigilância durante a noite. Durante o dia, a polícia ainda surge de vez em quando e faz-se notar nas redondezas, ou é possível encontrar a força militarizada MINUSTAH da ONU a patrulhar a área. Mas à noite as forças de segurança desaparecem. Com pouca ou nenhuma iluminação, dezenas de milhares de estruturas de folhas e paredes de lona tornam-se um alvo convidativo para ladrões e gangs de mal-feitores. A violência sobre mulheres e raparigas generalizou-se. As mulheres que têm de sair à noite para ir às casas de banho são atacadas. Algumas falam em não deixar nascer os bebés que resultam da violação. Outras não o fazem pela crueza do aborto. Quando vão à polícia pedir para que investigue, os agentes pedem-lhes dinheiro para gás. Mesmo aquelas que pagam à polícia não vêem qualquer resultado disso. Reina uma sensação de impunidade.
Estima-se que existam 1.300 acampamentos de pessoas sem casa no Haiti. Os sem-abrigo vivem, literalmente, onde quer que seja. Há pessoas acampadas no meio de ruas. Constroem-se cabanas ao longo das ruas. Em cada parque, pátio de escola ou terreno de estacionamento, parece haver gente a viver debaixo de tendas e alpendres de folhas.
As famílias mais afortunadas vivem em modestas tendas de plástico. As mais recentes são azul forte com bandeiras vermelhas com estrelas dentro – oferecidas na passada semana pela China. As menos afortunadas, e são muitas, vivem debaixo de folhas secas amontoadas entre estacas de madeira feitas com galhos de árvore. Dentro dos acampamentos há pequenas parcelas de terra batida – de poucos metros de largo. As tendas e choupanas estão colocadas lado a lado, separadas por alguns centímetros de distância.
Estão a começar os despejos. A Igreja está a empurrar as pessoas para fora das suas propriedades.
As escolas que estão a reabrir fecham as torneiras da água às pessoas acampadas nos terrenos de jogos. Algumas assumem posições de autoridade dizendo abertamente que as pessoas devem ser forçadas a sair dos campos. Mas apenas 13 000 abrigos temporários foram construídos e ficam demasiado longe da família, da escola, do emprego e dos cuidados médicos. Não há lugar para onde ir.
A ONU, que é quem governa efectivamente o Haiti em conjunto com os haitianos e os Estados Unidos, organiza quase diariamente reuniões para coordenar a resposta a dezenas de questões como segurança, alimentação, água, reconstrução e violência sexual. Defensores dos direitos humanos em Port-au-Prince queixam-se que nenhuma dessas reuniões é conduzida em kreyol, a língua do povo haitiano.
No entanto, mantém-se a esperança. As mães e avós haitianas que fomos ouvir estão a lutar pelas suas vidas. A KOFAVIV e o BAI2, e outras organizações populares de direitos humanos, denunciam, manifestam-se, levam a educação aos acampamentos e fazem trabalho conjunto de luta pela justiça social.
Durante a chuva torrencial de sábado, dezenas de pessoas reuniram, sentadas em cadeiras dobráveis, sob o beiral da varanda da frente do BAI para discutir o que fazer para conseguir que os EUA, a ONU, o Haiti e as ONG cumpram a sua missão.
Juntas a pessoas tem uma chance. Tal como nos disse uma mulher que faz trabalho contra a violência, “se for apenas uma mulher contra um homem, talvez o homem vença. Mas se a mulher usar um apito para alertar outras mulheres e outras mulheres acorrerem, talvez o homem veja que vai perder e fuja”.
Entretanto, Wilda e um milhão doutros haitianos estão a morrer lentamente de fome, doença, falta de segurança e negligência. Nove meses depois do terramoto.
Fonte: Esquerda.net