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Eugênio Bucci: ‘Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados’

19 de julho de 2021

No livro ‘A superindústria do imaginário’, o jornalista e professor Eugênio Bucci trata da relação entre seres humanos e algoritmos

 

Enquanto navegamos pelas redes sociais, estamos trabalhando – para os outros. E de graça, permitindo que nossas informações sejam reunidas, catalogadas e transformadas em bases de dados. Não há mais um imaginário com o qual as companhias dialogam para vender um produto. O capital passou a criar o próprio imaginário em que estamos mergulhados.

É esse um dos pontos de partida para o novo livro de Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. “A superindústria do imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível” inaugura a Coleção Ensaios da Editora Autêntica. E traz reflexões e conceitos nos quais Bucci vem trabalhando há mais de duas décadas.

“Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”, diz o autor na entrevista a seguir, na qual fala sobre as ideias do livro e o modo como essa nova configuração na relação com o capital influencia diferentes campos, da arte à produção jornalística.

 

“Tragada pela economia das sensações e das emoções, a política se degrada em fanatismo. O que é o bolsonarismo, senão uma legião de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era digital para promover a mentira, o ódio e o culto da violência? Entre as consequências dessa indústria nós podemos listar, também, o adoecimento da democracia”
 

O livro traz reflexões já presentes em seu doutorado. Em que medida o passar do tempo contribuiu com as ideias apresentadas? O que ainda não havia que hoje se tornou presente e foi fundamental para o livro?

Mais do que reflexões, há conceitos nesse livro que eu formulei há mais de 20 anos. O entendimento do que vem a ser o valor de gozo é um deles. A expressão foi cunhada pelo psicanalista francês Jaques Lacan num curso que ele deu em 1967, mas nunca foi desenvolvida por ele ou por seus seguidores na forma de uma categoria comunicacional e econômica. E, no meu doutorado, há 20 anos, eu proponho um modelo teórico para isso. Agora, no meu novo livro, essa construção ficou mais aprofundada e mais fundamentada. Outros conceitos cruciais, porém, eu só pude enxergar e elaborar mais tarde, como o de superindústria do imaginário. Quanto ao que não existia na época, eu posso lembrar aqui as plataformas sociais e esses conglomerados monopolistas globais, como Facebook e Google. O advento desses gigantes da era digital só confirmou os postulados da minha tese.

O senhor mostra como estamos expostos aos algoritmos em um jogo desigual, pois sabemos pouco sobre eles. É possível igualar as chances nesse jogo?

Por enquanto, acho difícil e improvável igualarmos esse jogo, que se tornou uma relação assimétrica num grau absurdo. Os algoritmos sabem tudo sobre a intimidade dos frequentadores da internet e esses frequentadores nada sabem sobre os algoritmos. Perto disso, o “1984” de George Orwell é uma fábula infantil. A exploração econômica que esses conglomerados realizam é mais absurda ainda. Pensemos nas plataformas sociais. O modelo de exploração chega às raias da desumanidade. Quem são os digitadores, os fotógrafos, os editores, os locutores, os atores e os modelos de tudo o que aparece nas plataformas? Ora, os “usuários”, como aprendemos a chamá-los. Um Facebook da vida não precisa contratar ninguém para “postar conteúdos”, no linguajar deles, pois os tais “usuários” fazem isso de graça. É como se estivessem se divertindo, aproveitando as vantagens de um entretenimento que lhes é dado de graça. Sejamos diretos: quem entra de graça aí não são as funcionalidades das plataformas, mas o trabalho do tal “usuário”. Além do seu trabalho e do seu olhar, que vale dinheiro, e muito, o pobre e inocente “usuário” entrega todos os seus dados, sua biografia, seus sonhos mais pueris para o algoritmo. Depois, no fim da linha, quem vai ser vendido é o próprio usuário, com seus dados, seu olhar e o circuito secreto de seu desejo inconsciente. Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora.

Existe alguma resistência a ser imaginada?

Teremos de construir uma forma de resistência, mas ela está muito distante. Ela só poderá vir da regulação democrática que seja capaz de, em primeiro lugar, quebrar os monopólios e, em segundo lugar, impedir a apropriação desleal, pelos algoritmos, dos dados e da configuração do nosso desejo. O que essas empresas fazem é mercadejar com o que há de mais íntimo e mais pessoal. Isso é intolerável se queremos viver numa sociedade civilizada. É verdade que a tecnologia nos trouxe e nos traz coisas maravilhosas, mas a tecnologia aprisionada pela ganância do capital rebaixa a dignidade humana a um patamar selvagem, que não podemos aceitar. Uma rebelião digital é urgentemente necessária.

Em um contexto no qual o sujeito tem sua própria vontade trabalhando a favor do capital, é possível ainda falar de individualidade?

Sim, a individualidade existe, assim como existem as subjetividades de cada pessoa. Mas, não nos esqueçamos, há um processo caprichoso e atroz de colonização dos nossos aparatos psíquicos individuais. Os artifícios da exploração adotados pela superindústria são mais ou menos como um vírus que se insinua por dentro do corpo e se aloja no interior das células de sua vítima para subjugar o organismo. Os bits da superindústria penetram nas subjetividades, de onde extraem informações, transformam o desejo numa mercadoria barateada e escravizam as pessoas. Há estudos provando que essas plataformas se valem de mecanismos viciantes para capturar e enclausurar o tal “usuário”.

Quais as consequências imediatas para o ser humano desse gozo obrigatório imposto pelo capital?

Uma delas é a perda de contato com a razão, com os fatos e com a política orientada para o bem comum. Tragada pela economia das sensações e das emoções, a política se degrada em fanatismo. O que é o bolsonarismo, senão uma legião de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era digital para promover a mentira, o ódio e o culto da violência? Entre as consequências dessa indústria nós podemos listar, também, o adoecimento da democracia.

A superindústria do imaginário traz mudanças para a organização do espaço público, interferindo em noções de tempo, de espaço, e nas formas de comunicação. Em que medida a esfera pública compreende essas mudanças e se adapta a isso?

Veja que coisa perturbadora. Nossa esfera pública foi moldada pela mediação dos jornais impressos, que chamo de instância da palavra impressa. Esse padrão comunicacional predominou desde fins do século 18 até a primeira metade do século 20 e imprimiu o seu fenótipo ao Estado moderno. Hoje, porém, a sociedade pulsa em outro padrão, a instância da imagem ao vivo, da qual a internet é uma extensão e um aprofundamento vertiginoso. Os dois padrões entram em embates o tempo todo. As mobilizações de 2013 no Brasil foram uma evidência disso: as redes sociais se batiam contra a burocracia estatal, que não tinha como assimilar aquele imenso volume de demandas, que acabaram ficando sem respostas.

A passagem da instância da palavra impressa para a instância da imagem ao vivo também tem influências na atividade jornalística. Como, no entanto, pensar na possibilidade de transformação do jornalismo em um contexto que favorece as fake news?

O jornalismo está em crise escancarada, não apenas porque perdeu o pé das tecnologias, mas principalmente porque a política passou a desprezar a verdade dos fatos, que é o centro de gravidade da função jornalística. Se um presidente da República dá uma banana para os fatos, todos os dias, o que o jornalismo pode fazer? Pode insistir na apuração do que se passa, como temos feito, mas a situação é difícil. O ambiente digital, que foi sequestrado pela voracidade de um capitalismo sem princípios, tem sido hostil para os jornalistas, para o diálogo racional e para a moralidade pública.

A instância da imagem ao vivo “é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço”. Em que medida o modo como se organiza esse agora, com suas novas especificidades, pode levar a uma mudança de percepção a respeito do passado ou então da possibilidade de se imaginar um futuro?

Tenho a impressão de que o gerúndio é a forma verbal por excelência da nossa era. Não é por acaso que essa mania de falar tudo no gerúndio, própria do telemarketing americanizado, teve alastramento tão penetrante. A superindústria do imaginário existe no gerúndio, numa bolha temporal em que as coisas seguem num acontecendo rumorejante, sem que seu início e seu fim se mostrem com clareza. O curso da história se dissolve nesse gerúndio totalitário, em que Elvis Presley, do qual se diz que não morreu, Buda, Neymar, Anitta, a rainha Elizabeth II, o papa Francisco e os ministros do Supremo Tribunal Federal parecem ser celebridades equivalentes, análogas, elas todas fungíveis, elas todas igualmente vazias. Que futuro a gente pode imaginar? A propósito, o verbo imaginar ficou meio inviável dentro do imaginário superindustrial.

Fonte: Estado de Minas

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