Quando morre um escritor do porte de José Saramago, perde-se não apenas um artista, mas também um intérprete singular da cultura de um povo e de toda a humanidade.
“Após escrever tantas páginas, fez-se-me a convicção que devemos levantar do chão nossos mortos, afastar dos seus rostos, agora só ossos e cavidades vazias,
a terra solta, e recomeçar a aprender a fraternidade por aí.” (José Saramago, Manual de pintura e caligrafia)
Quando morre um escritor do porte de José Saramago, perde-se não apenas um artista, mas também um intérprete singular da cultura de um povo e de toda a humanidade. O romancista português, único de nossa língua a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, cumpriu de fato com rara maestria a dupla missão que ele próprio se impôs ao longo de seus fecundos 87 anos de vida: foi um engenhoso pastor de fábulas e também uma providencial lanterna dos afogados para todos nós que quase sucumbimos ao tsunami pós-moderno deste planeta neoliberalmente globalizado.
Li-o pela primeira vez nos anos 1980, quando me chegou às mãos um exemplar encadernado de Memorial do convento (1982). Encantei-me de imediato com a história de Baltasar e Blimunda, duas criaturas simples e resolutas cujo novelo amoroso se enreda na saga do padre voador Bartolomeu de Gusmão, um brasileiro visionário que em plena corte de D. João V, no século 18, reeditava os desígnios de Da Vinci e sonhava alçar aos céus a sua passarola. Eu logo compreendi que somente o neto de um guardador de porcos e herdeiro da secular tradição oral dos camponeses do Alentejo saberia tornar universais criaturas tão telúricas, cuja grandeza moral e espírito empreendedor se contrapunham ao ócio da nobreza e à opressão da Igreja Católica. O pastor de fábulas já se mostrava ali em plena maturidade, arrebanhando nos pastos do imaginário de sua gente os causos fabulosos que calavam tão fundo no coração dos leitores.
Esse sopro de realismo mágico também se fez presente nas páginas de A jangada de pedra (1986), outra narrativa quase surreal do autor, cujo argumento me soou como uma monumental alegoria da condição a que foram relegados portugueses e espanhóis no Velho Mundo. Após uma fissura dos Pirineus, a Península Ibérica se desgarra do continente e permanece à deriva no Atlântico. No texto de Saramago, o oceano abriga um caudal de mitos e evocações históricas, em que há lugar inclusive para D. Quixote e os peregrinos que na Idade Média cruzavam a trilha de Santiago de Compostela. Em certa medida, esse tom de fábula apocalíptica seria reencenado mais tarde em Ensaio sobre a cegueira (1995), em que o aparente ceticismo capitula em face da esperança, aquele sentimento último que se esconde na caixa de Pandora da imaginação. Nenhuma obra, porém, me pareceu tão ímpar e iluminada quanto O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), em que o escritor se ocupa de nos descrever o filho de José como um ser absolutamente humanizado, que se rebela contra o seu destino e passa a questionar a figura divina, os dogmas do cristianismo e a própria Igreja, assim como o estigma metafísico do sofrimento e da morte. Publicada na mesma época em que os profetas da pós-modernidade apregoavam o fim da história, a obra ecoou dentro de mim como uma canção da Legião Urbana, em que a insólita e terrena paixão de Cristo e Madalena mesclavam a dicção lírica de Camões e a solene inflexão da epístola de São Paulo: ainda que falássemos a língua dos homens e a língua dos anjos, sem amor – fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente – nós nada seríamos…
É óbvio que suas opções estéticas e ideológicas lhe renderam censuras e vetos anacrônicos de governos e de corporações da fé. Se, de um lado, a igreja portuguesa identificava no Evangelho uma série de “alucinações religiosas”, por outro, a Secretaria de Cultura (?) de Portugal proibiria, em 1992, a inscrição do livro na disputa do Prêmio Literário Europeu, por considerá-lo “ofensivo para o catolicismo do povo lusitano”. Era apenas mais uma de tantas admoestações que os prepostos da hipocrisia lhe fariam, como atestam as declarações do Vaticano logo após o anúncio de sua morte, há uma semana, condenando-o pelas supostas heresias e pela explícita adesão ao comunismo.
A simpatia por Marx, aliás, não incomodou apenas o clero: em um país de triste passado salazarista, a incisiva solidariedade de Saramago às mais diversas causas e movimentos revolucionários do planeta (desde a luta dos palestinos contra o Estado fascista de Israel até o clamor do valoroso Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST por uma reforma agrária radical na pátria dos coronéis) também suscitou reações coléricas da mídia burguesa e da (pseudo) intelligentsia a seu serviço, sempre pronta a tachá-lo de “fanático” ou “intolerante”. Nada disso impediu que esse prodigioso contador de histórias viesse a conquistar um público fiel e numeroso nos mais diversos rincões do globo. Um mérito único do genial prosador, cuja ficção logra ao mesmo tempo arrebatar-nos e revelar-nos as contradições profundas do passado e do presente, alumiando o passo dos cegos e instalando preciosos grãos de dúvida sobre as verdades cristalizadas dos poderosos.
Saramago se inscreve, enfim, naquela galeria ímpar de romancistas que, com o barro da ficção, modelam sob a forma de tramas e personagens memoráveis a essência última dos homens. O camarada russo Fiódor Dostoiévski decerto o acolherá com muito gosto em sua nova morada. Quem sabe até o nosso solene Machado de Assis o aguarde ao lado de Brás Cubas, o célebre “defunto autor”, a fim de relatar-lhe os mais recentes caprichos das elites do Novo Mundo, pródigas na arte de prometer mudanças que nunca se concretizam.
Não sei como será a conversação dos gajos na tertúlia dos astros. Aqui embaixo, continuamos todos nós a infindável sina de abrandar estas pedras, suando-se muito em cima ou a de tentar despertar terra sempre mais extinta, como já cantou mestre João Cabral. Faço votos, porém, que, com a sanção definitiva desta morte, a sábia ficção de Saramago nunca deixe de ser recitada em voz alta nas escolas ao redor do mundo, inclusive cá nesta Bruzundanga em que diariamente nos levantamos do chão para recomeçar a aprender a inesgotável lição da fraternidade.
Fonte: Luiz Ricardo Leitão – escritor e professor adjunto da UERJ.