A passagem de Glauber Rocha por Cuba já havia sido recuperada em um belo filme de seu filho, Eryk Rocha (“Rocha que Voa”, 2002). Agora, os últimos meses de vida do maior cineasta brasileiro ganham a película pelas mãos da artista plástica Paula Gaitán, em “Diário de Sintra”. Este é um documentário de uma mulher apaixonada em busca daquilo que perdeu, à procura daquela Sintra onde Glauber se retirou com a família pouco antes de sua morte – eles chegam a Portugal em fevereiro de 1981, Glauber morre em agosto daquele ano.
“Diário de Sintra” é um filme em primeira pessoa. Mas esse “eu”, embora presente e palpável em cada imagem, corte ou encenação, jamais se declara diretamente. Viúva do cineasta, Gaitán mistura filmes caseiros, depoimentos, entrevistas, fotos… Mas a sensação é de estarmos vendo uma espécie de travelogue, entre passado e presente, sonho e realidade, nostalgia e rememoração – “Caminhos que levam a Sintra ou talvez a lugar nenhum”, diz a cineasta em off.
A idéia é filmar essa perda sem jamais emulá-la; ela precisa ser efetivamente vivida no e pelo filme. É tornar presente a ausência. A pergunta que se impõe é a seguinte: Como transformar aquelas imagens antigas e caseiras em material estético-narrativo para a feitura de um longa? Pois Gaitán trabalha na superfície das coisas, no regime da resignificação. A realizadora tenta uma série de caminhos. Vemos Glauber disperso, fragmentado. “Diário de Sintra” faz dele um galho de árvore, uma pequena onda de um rio. Glauber, força da natureza. Algumas soluções visuais dão muito certo (as mãos tentando se tocar), outras nem tanto (as fotos na árvore).
Em determinado momento, o filme entrega algumas fotos de Glauber e família a diversos moradores de Sintra. São velhinhos e velhinhas que viviam na cidade quando o cineasta esteve por lá. As pessoas tentam lembrar daquele rosto. Uma senhora afirma: “Não o reconheço, mas tenho certeza que é daqui”. Outra diz estar cheia de dúvidas, contudo, aponta uma vila mais ao norte, fora do quadro: “talvez ele seja de lá”, continua. Uma terceira sublinha sem pestanejar de que se trata de um ator português de cujo nome não se recorda, embora estivesse ótimo em uma determinada e recente novela. Sintra parece ter adotado Glauber. Logo ele, que costumava dizer, como ouvimos na faixa sonora, que “Sintra é um belo lugar para morrer”.
Gaitán não pretende fazer uma biografia ou uma mera homenagem afetiva. A cineasta não adula, seu filme segue desprovido de qualquer afetação. O que se vê é um ensaio poético, um exercício de experimentação, avizinhado a vídeo-arte, campo de origem de Gaitán, com sobreposições de elementos visuais e textuais em um mesmo plano. É bem verdade que algumas imagens optam pela procura da beleza ao invés da busca do sentido. Vez ou outra, o filme transborda certa necessidade de ser “artístico” a todo custo. “Diário de Sintra” ainda é um tanto nostálgico, mas nada que faça do filme um lamento ou um culto a personalidade genial de Glauber. Gaitán rememora o passado poeticamente como uma questão, sobretudo, do presente.
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