Colocada em prática, a proposição neoliberal do Banco Mundial tanto aprofundará a desigualdade brasileira como desconstruirá a dinâmica da economia social inaugurada pela Constituição de 1988
O Estado brasileiro exerce papel extremamente paradoxal. Para os pobres, o Estado se apresenta excessivo na arrecadação e contido no gasto, ao contrário dos segmentos enriquecidos da população que são beneficiados pela timidez do Estado na tributação e excessivamente generoso no gasto.
Independentemente dessa triste realidade no país, o Banco Mundial trouxe a público mais uma proposição que sustenta o conjunto das reformas implantadas pelo governo Temer que exclui a base da pirâmide social do orçamento público. A leitura do documento “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” possibilita constatar o que parece ser uma espécie de propaganda enganosa, uma vez que o seu conteúdo termina justamente por negar o próprio título.
A brutal distorção no gasto público ocorre inversamente ao dimensionado pelo documento do Banco Mundial que praticamente se isenta de tratar da principal problemática da regressividade que se estende sobre o sistema de arrecadação dos tributos no Brasil. Destaca-se, com exemplo, que no ano de 2012, o segmento etário de 15 anos e mais de idade e com rendimento de até 2 salários mínimos mensais que respondeu por 68% da população brasileira, detinha menos de 1/3 do total dos rendimentos, mas contribuía com 42,1% do total da arrecadação tributária nacional.
Para o mesmo ano, o segmento etário de 15 anos e mais e com rendimento acima de 20 salários mínimos mensais representou 0,7% da população, participando com 10,8% do total dos rendimentos do país e contribuindo com 8,4% do total da arrecadação da chamada Renda Tributável Bruta (RTB). De toda a população brasileira, somente o segmento que recebia até 5 salários mínimos mensais contribuía proporcionalmente mais com a arrecadação da RTB do que a participação relativa no total dos rendimentos.
Por força disso, a carga do tempo de trabalho comprometida com o pagamento da arrecadação tributária nacional se apresenta extremamente desigual entre brasileiros ricos e pobres. Enquanto o segmento que recebe até 2 salários mínimos mensais transfere o equivalente a 197 dias de trabalho para a arrecadação da RTB, o estrato social com rendimento acima de 20 salários mínimos mensais compromete 106 dias de trabalho. Ou seja, 46,2% a menos de tempo de trabalho para pagar tributos do que os mais pobres em todo o país.
Além disso, o Banco Mundial esquiva-se de tratar a respeito do escândalo dos juros no Brasil. No ano de 2015, por exemplo, os juros representaram 49,4% do comprometimento com a assistência e previdência social, enquanto em 1975 a relação era de 9,7%. Em 1995, o pagamento de juros da dívida pública equivalia a 34,6% dos gastos com a assistência e previdência social.
Mesmo assim, o problema para o Banco Mundial é a Previdência Social e os gastos públicos, excetuando os juros da dívida pública.
Em relação à experiência internacional, percebe-se a correlação positiva entre maior receita tributária e a menor desigualdade na distribuição dos rendimentos. O contrário também ocorre diante da menor receita tributária e a maior desigualdade de renda.
E no Brasil não parece ser diferente em relação à arrecadação tributária e ao grau de desigualdade medido pelo índice de Gini (leia abaixo). No ano de 1975, por exemplo, a carga tributária brasileira era de 25,2% do PIB e o Gini estimado foi de 58,7, passando, em 1995, para 57,3 em relação à carga tributária de 30,6% do PIB. No ano de 2015, o Gini decaiu para 49,4 para a carga tributária de 32,7% do PIB.
Colocada em prática, a proposição neoliberal do Banco Mundial tanto aprofundará a desigualdade brasileira como desconstruirá a dinâmica da economia social inaugurada pela Constituição de 1988. Se considerada ainda o processo de flexibilização trabalhista aprovado recentemente, o próprio emprego público sofrerá enorme desmonte, concomitante com a desconstituição das bases iniciais do Estado de bem estar social.
P.S.: O Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo.Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero, podendo também ser representado numa escala de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos.
Marcio Pochmann é Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.
Fonte: Rede Brasil Atual
Escrito por: Marcio Pochmann