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Bacurau: Distopia-manifesto de um Brasil que resiste

12 de setembro de 2019

Uma crítica sobre o filme que já ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, de Melhor Filme na principal mostra de cinema de Munique e arrecadou R$ 1,5 milhão em bilheteria no final de semana de estréia

Bacurau é impressionante pela coragem de levar às raias de fato, a violência muitas vezes simbólica contra nordestinos e brasileiros, no cenário nacional e internacional. Considerando a intenção das distopias de ficção científica como de nos alertar sobre futuros possíveis, que podem ser evitados, o filme torna-se muito importante no panorama atual de desvalorização da nossa cultura, em que há, da parte de alguns, completa subserviência aos Estados Unidos, com o representante (ilegítimo) do país imbuído do mais abjeto vira-latismo.

 

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dois pernambucanos, ousa. Mas não é de hoje que Kleber Mendonça faz isso. O Som ao Redor foi mais sutil quanto à violência, mas já apresentava um gostinho de Bacurau ao mostrar a tensão contínua presente na sociedade, na expectativa da violência. O diretor também não se omitiu, na estréia de Aquarius em Cannes, quando participou, junto com a equipe, da denúncia ao golpe em curso no Brasil.

 

Mas voltando a Bacurau, no início acompanhamos Teresa na viagem de retorno à cidade natal, para o funeral de sua avó, Dona Carmelita, falecida aos 94 anos, respeitada como grande matriarca do lugar. A estrada para chegar lá já traz um acidente, com caixões espalhados pela pista. O motorista, visivelmente tenso, não pára, sequer desvia dos caixões. É evidente que algo está muito errado.

 

Também é revelado logo que há um “foragido”, com uma recompensa oferecida pela sua cabeça – como em um western -, mas talvez não seja desejável entregá-lo. Precisamos descobrir mais sobre Lunga, e este é um dos pequenos mistérios que são entrelaçados no começo e vão se desvendando no decorrer da trama, assim como a estranha presença de discos voadores no sertão.

 

Estranho, aliás, é um bom adjetivo para o filme. No interior empoeirado de Pernambuco, a tecnologia está presente no sinal de wi-fi, em telas e sistemas de som que levam o audiovisual a todos cantos, desde o cortejo fúnebre até o carro de apoio ao Prefeito nem um pouco confiável – representante dos políticos canalhas e mal- intencionados (será que lembra algum em especial?). A ficção árida vai até um ponto de violência absurdo, em que as armas tornam-se elementos importantes para uma explícita cultura da violência e a vida humana deixa de ter valor.

 

Ou, talvez seja melhor dizer, especialmente algumas vidas deixam de ter valor. Nos estudos de jornalismo internacional já é evidente que acidentes de avião envolvendo mortes de europeus ou norte-americanos têm maior destaque do que com africanos ou brasileiros. Então, do ponto de vista internacional, será que a vida de um brasileiro vale o mesmo que a de um estadunidense? A resposta dos locais a isso é resistência, é a mesma dada à pergunta irônica “quem nasce em Bacurau é o quê?” “É gente!”

 

Estranha é, também, a mala com que Teresa chega, ostensivamente vermelha, conduzida de forma respeitosa e reverente pela coletividade até o interior da casa. Sem dúvida, ela simboliza as “vacinas” que podem salvar algumas vidas…

 

Aos poucos vamos conhecendo as diversas tensões que se acumulam. Logo depois de topar com os caixões na estrada, descobrimos que a escassez de água chegou ao ponto limite, em verdadeira guerra. Fica fácil entender o que já é muito bem conhecido no nordeste: o problema não é de seca, mas de cerca.

 

Dos estímulos químicos para suportar tal realidade, dois se colocam em oposição (seriam as pílulas vermelha ou azul de matrix?). Há os remédios tarja preta, que acompanham os mantimentos deixados pelo Prefeito Tony Jr e, segundo a médica (Sônia Braga, em personagem que deve ter sido criada especialmente para ela), são distribuídos no país inteiro. Ela alerta que a medicação deixa as pessoas lesadas (aí está uma boa explicação para o estado de coisas no país). Mas há também uma pílula “psicotrópica”, usada entre os moradores como espécie de hóstia, que parece mesmo uma pílula do mato…

 

Entre as diversas referências que podemos encontrar em Bacurau estão westerns, filmes de terror e, entre os cineastas,vale citar Tarantino e talvez Glauber Rocha. Mad Max é facilmente evocado como distopia do futuro árida e violenta. E, por que não, Clube da Luta, com indivíduos que perderam a capacidade de sensibilizar-se no cotidiano e precisam de estímulos mais e mais violentos para sentir prazer…O cangaço está presente como memória e fonte de coragem. A ameaça da cidade ser riscada do mapa – como foi Canudos- exige um reforço especial. Lunga – Silvero Pereira, impressionante no papel -, surge como um Lampião saído dos infernos para lutar ao lado dos habitantes da cidadezinha, e não posso deixar de comentar que sua citação a Che Guevara é, sim, uma homenagem, um tanto sui generis…

 

A nudez aparece ocasionalmente, com diversas funções. Como forma de demonstrar a objetificação do corpo ou com a naturalidade do despertar de um casal. Ela é, de fato, inerente à brasilidade, com o carnaval a tranformando em valor cultural (no bom e no mau sentido). No filme, o mais interessante é que a apropriação desta nudez pode trazer até a uma releitura da suposta vulnerabilidade associada a ela…

 

Por fim, é preciso destacar dois momentos em que a cultura aparece como legítima arma contra os invasores: na cantoria irônica do repentista e na importância do museu. Aliás, vocês precisam conhecer o museu de Bacurau!

 

A única ressalva que julgo necessário fazer, como gaúcha nordestina que sou, residente no Ceará há mais de dez anos, é sobre a forma estereotipada e negativa com que os brasileiros do sul (ou Sudeste?) foram retratados. Se houvesse ao menos outra personagem declaradamente da mesma origem ao lado do povo do vilarejo, para funcionar como contraponto, a caracterização teria sido relativizada. Portanto, ao sair do filme é preciso lembrar que nem todo sulista é subserviente aos EUA , e nem todo nordestino valoriza conscientemente a sua, a nossa cultura.

 

O filme já ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, de Melhor Filme na principal mostra de cinema de Munique, na Alemanha, e três prêmios importantes no Festival de Cine de Lima, no Peru (Melhor Filme, Melhor Direção e Prêmio da Crítica Internacional). Além disso, está tendo boa audiência nacional, arrecadou 1,5 milhão em bilheteria no final de semana de estréia…

 

No final, letreiros ressaltam que a cultura, além de ser a identidade de um país, também é uma indústria, e merece respeito, com a informação de que a realização e distribuição do longa gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. A valorização da cultura transborda para fora do filme…

 

E, para quem leu até aqui, a recomendação é que todos que têm interesse em conhecer uma história de RESISTÊNCIA inspiradora assistam o filme, e logo! Não devemos esperar do desgoverno atual atitudes compatíveis com uma democracia plena. Bacurau não é apenas um filme, mas um manifesto…

 

Encerro com a linda letra de Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré, uma surpresa na trilha do filme:

 

“Vim aqui só pra dizer

 

Ninguém há de me calar

 

Se alguém tem que morrer,

 

Que seja pra melhorar.

 

Tanta vida pra viver,

 

Tanta vida a se acabar,

 

Com tanto pra se fazer,

 

Tanto pra se salvar…

 

Você que não me entendeu,

 

Não perde por esperar…”

Crédito: Divulgação
Fonte: Jornalistas Livres
Escrito por: Valéria Regina Dallegrave – escritora e roteirista gaúcha radicada no Ceará

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Publicado por: Fabiano Couto

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