No Brasil, os bancários estão dentre as categorias mais acometidas por doenças/acidentes do trabalho como fruto do modelo de gestão adotado pelos bancos. Para Maria Maeno, médica e pesquisadora da Fundacentro, esse modelo de gestão está diretamente ligado à busca por lucros cada vez maiores.
Em entrevista, a especialista lista a redução dos postos de trabalho, as terceirizações, o ritmo intenso, as metas inatingíveis e a violência psicológica como fatores de adoecimento.
“As empresas se recusam a discutir a organização do trabalho. Há uma recusa sistemática dos bancos de discutir as metas, por exemplo, pois alegam que se trata de uma questão que só diz respeito a eles. Mas, os pesquisadores da área de saúde do trabalhador entendem que as metas devam ser objeto de questionamento e mudanças. É expressão do conceito de que “dentro dos muros das empresas” tudo é permitido. Não é assim. Há leis e conceitos de ética e de direitos humanos que devem ser respeitados”.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Nos dias de hoje, a organização do trabalho adotada pelos bancos é um dos principais fatores de adoecimentos na categoria bancária. Quais aspectos dessa organização são mais nefastos para os trabalhadores das instituições financeiras?
Maria Maeno – É difícil classificar por ordem de importância os aspectos da organização do trabalho que mais contribuem para o adoecimento e desgaste físico e psíquico dos bancários. Eu diria que o que produz o adoecimento é um conjunto de aspectos a serem considerados, quais sejam, a estipulação de metas que os bancários unanimemente relatam não conseguirem atingir, a sensação de desvalorização do trabalho e a sensação de serem facilmente descartáveis, as possibilidades de exposição de seus “fracassos” perante os colegas e clientes, a sobrecarga de trabalho, o ritmo exigido para que possam dar conta do trabalho, a grande probabilidade ou certeza de não conseguirem satisfazer ao exigido, a sensação de que têm que vender produtos que não servem para os clientes. E diante de tudo isso, sobretudo a falta de perspectivas e a sensação de impotência, seja pelo poder dos bancos seja pela dificuldade de organização dos trabalhadores.
O que está por detrás de toda a violência organizacional adotada pelos bancos?
Maria Maeno – Infelizmente a sociedade em que vivemos coloca os interesses econômicos acima de quaisquer outros interesses. Tudo gira em torno do desempenho econômico das empresas, pois há um senso comum de que isso garante os empregos. No entanto, a despeito do excelente desempenho financeiro de diversos setores econômicos, entre os quais o financeiro, o número de postos de trabalho vem decrescendo, a terceirização vem aumentando e com isso uma maior precarização do trabalho. Nitidamente esse enxugamento do contingente de bancários e os aspectos que mencionei como marcantes no trabalho bancário trazem consequências danosas à saúde, inicialmente dos trabalhadores, mas inevitavelmente de suas famílias, que são atingidas seja pelo sofrimento seja por repercussões financeiras.
Frequentemente observamos uma desagregação familiar quando um dos membros é acometido por adoecimentos crônicos como ocorre com os bancários. Nada disso é contabilizado em toda a sua extensão no balanço financeiro das empresas. Quem paga pelos adoecimentos e suas consequências é a sociedade, seja pelos gastos feitos pelo SUS, pela Previdência Social, pela Assistência Social, pelos processos judiciais, seja pelo sofrimento social que é intangível, incomensurável. E não há um mecanismo que penalize realmente as empresas pela sua negligência em relação à saúde dos trabalhadores, dando uma sensação de impunidade dos setores poderosos financeiramente.
Qual a diferença entre assédio moral e violência organizacional?
Maria Maeno – Muitos preferem atribuir a existência de situações de humilhações, de desrespeito sistemático e de assédio moral, principalmente entre chefias e subordinados, a suas características pessoais. Se acreditássemos nisso, bastaria, então, localizar os casos, pedir a punição das pessoas que tivessem essas práticas e pouco a pouco tudo se resolveria.
No entanto, os estudos mostram que existe um sistema com configurações do trabalho que propiciam a ocorrência de situações de violência psicológica, que em determinados contextos de alta competitividade, de esgarçamento do tecido social e de falta de solidariedade, são aceitas pelos trabalhadores, como se fossem inevitáveis e como se somente as pessoas “fracas” pudessem ser alvo desses ataques.
As relações interpessoais são fortemente influenciadas pelo contexto em que se vive e trabalha. Em determinados ambientes de trabalho, situações de humilhação são repudiadas e rapidamente excluídas, mas para isso é preciso que haja organização e solidariedade entre os trabalhadores e uma estrutura organizacional que permita as discussões e as trocas de ideias. Em outros, as humilhações, as minimizações dos espaços, as ofensas implícitas ou explícitas, os comportamentos hostis ou de indiferença, por meio de palavras, comportamento e gestos fazem parte da estrutura organizacional, viabilizadas por formas de gestão, todas adoecedoras.
Infelizmente, segundo pesquisas, o assédio moral propiciado pela estrutura organizacional tem sido constatado nos mais diferentes ramos econômicos, pois buscam a adesão às metas organizacionais, a obediência e a submissão, a alta performance dos trabalhadores com cobranças sistemáticas e exageradas, diminuição da autonomia de atuação, pressão em toda a estrutura e ameaças de perda de cargos ou demissões, terreno propício para práticas de violência e abuso moral.
Com ampla experiência acumulada em pesquisas sobre programas de reabilitação, como você avalia a proposta da Fenaban para o estabelecimento de um acordo de cooperação entre os bancos e o Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS)?
Maria Maeno – A reabilitação profissional é parte de direitos dos trabalhadores garantidos pela Constituição Federal e outras leis. A prática demonstra que as empresas e o INSS entendem que o seu conceito de reabilitação profissional é a simples restrição de atividades de trabalhadores que apresentam problemas de saúde, sejam físicos ou psíquicos. Não se cogita mudar as condições adoecedoras que não só podem desencadear doenças, como podem agravar e cronificar várias delas. Nós trabalhamos com o conceito de que a reabilitação profissional pressupõe mudanças estruturais no trabalho que permitam ao trabalhador exercer uma função que seja importante para o processo de trabalho e ao mesmo tempo não contribuam para o agravamento do quadro clínico.
Também é importante que nos casos em que as pessoas tenham necessidade de manutenção de tratamento, que essa necessidade seja respeitada, não gerando situações de desconforto, constrangimentos e humilhações, quando não de punições explícitas. A ascensão profissional e a retirada de cargos de comissão não podem ser mecanismos de punição implícita, como se o adoecimento e a existência de restrições fossem opções dos trabalhadores.
Todos nós mudamos nossas características ao longo da vida, mesmo sem a existência de doenças e as nossas capacidades também mudam. Esse fenômeno natural não pode ser impeditivo do trabalho pleno e da satisfação pessoal e profissional. No entanto, o trabalho que temos hoje exige características não humanas dos trabalhadores, e esse tem que ser o foco da reabilitação profissional, que deve ser objeto de ações integradas do poder público, em particular, do INSS, do SUS e do Trabalho, que devem se articular com outros setores sociais, porém, sem se eximir de responsabilidades definidas em lei. Assim, a prática do INSS de homologar o que é definido pelas empresas não é condizente com os conceitos que coloquei e com as responsabilidades legais.
As empresas se recusam a discutir a organização do trabalho. Há uma recusa sistemática dos bancos de discutir as metas, por exemplo, pois alegam que se trata de uma questão que só diz respeito a eles. Mas, os pesquisadores da área de saúde do trabalhador entendem que as metas devam ser objeto de questionamento e mudanças. É expressão do conceito de que “dentro dos muros das empresas” tudo é permitido. Não é assim. Há leis e conceitos de ética e de direitos humanos que devem ser respeitados.
Parece-me que há sinalizações por parte do INSS de mudanças significativas nos seus conceitos e práticas. E é fundamental que os trabalhadores participem desse processo.
Há várias convenções da Organização Internacional do Trabalho homologadas pelo Brasil, as quais determinam a participação dos trabalhadores nos assuntos relacionados às condições de trabalho, à organização livre dos trabalhadores nos locais de trabalho, à autonomia necessária dos serviços de saúde das empresas. Só não são cumpridas.
Como representante da Fundacentro na Comissão de Acompanhamento do NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário), cujo objetivo é caracterizar as doenças relacionadas ao trabalho, na sua avaliação qual é o resultado prático desse novo instrumento?
Maria Maeno – O nexo técnico epidemiológico é a inclusão do critério epidemiológico dentre os demais utilizados para o estabelecimento do nexo causal. Portanto, nexo causal é a relação de causa e efeito entre as condições e organização do trabalho e uma lesão ou adoecimento. Ele pode ser estabelecido de várias formas. Uma delas é a presunção absoluta, isto é, se o paciente tem uma determinada doença é porque ela foi adquirida no trabalho. É o caso da silicose, causada pela exposição à sílica, da asbestose, causada pela exposição ao asbesto.
A outra é quando há evidências de que determinadas condições contribuíram significativamente para o desencadeamento ou agravamento de lesões ou doenças. Por exemplo, lesões por esforços repetitivos, transtornos psíquicos, varizes, hipertensão arterial. E a outra é quando se observa que dentre determinados grupos de trabalhadores há ocorrência significativa do ponto de vista estatístico de determinados tipos de adoecimento.
Esse critério foi denominado legalmente nexo técnico epidemiológico e presume-se que haja associação causal entre lesões e doenças e determinados grupos de trabalhadores, assumindo para definir esses trabalhadores a classificação nacional de atividades econômicas (CNAE).
Foi um grande avanço para combater a conhecida subnotificação. No entanto, a Previdência Social não tem acompanhado a sua implementação, que pressuporia acompanhar em quantos casos em que há associação estatística entre lesões e doenças não se caracterizou de fato o nexo causal. Nós não conhecemos essa informação, de forma que não sabemos em que medida o nexo técnico epidemiológico tem sido implementado. O que sabemos é que alguns grupos de adoecimentos que tiveram forte influência desse critério para uma ascensão de registro de benefícios acidentários concedidos em 2007 e 2008, nos últimos anos vêm apresentando decréscimos significativos. Exemplo, o registro de benefícios acidentários por transtornos musculoesqueléticos subiu em 2007 e 2008, como consequência do nexo técnico epidemiológico (de 19.956 em 2006, subiu para 95.463 e para 117.353 em 2007 e 2008 respectivamente). Já nos anos seguintes vêm apresentando queda ano a ano (98.415 em 2009, 88.270 em 2010, 83.837 em 2011 e 77.384 em 2012).
São quedas muito importantes, inexplicáveis do ponto de vista de eventuais mudanças das condições de trabalho que pudessem ter ocorrido e influenciado na prevenção desses adoecimentos. De uma forma diferente, mas também preocupante, é o grupo de transtornos psíquicos. Depois de um aumento de registro de benefícios acidentários de 612 em 2006 para 5.762 em 2007 e para 12.818 em 2008 (efeito do nexo técnico epidemiológico), vem oscilando em torno de 12 a 13 mil por ano, tendo sofrido uma queda para 11.597 em 2012.
No caso dos bancários, transtornos musculoesqueléticos e transtornos mentais são considerados presumivelmente como sendo relacionados ao trabalho.
E o que você diz sobre a implementação do FAP (Fator Acidentário de Prevenção)?
Maria Maeno – O FAP foi implementado, segundo a Previdência Social, como fator que aumentaria ou diminuiria as alíquotas pré-fixadas devidas pelas empresas ao Seguro de Acidente do Trabalho (SAT). Assim, a expectativa era de que as empresas que tivessem trabalhadores com maior proporção de lesões ou doenças dentro de seu ramo econômico seriam penalizadas com um aumento da alíquota, ocorrendo o contrário com as empresas que apresentassem uma menor proporção de trabalhadores com lesões ou doenças dentro de seu ramo econômico.
O que tenho são informações da imprensa fornecidas pela Previdência Social, que afirma que em torno de 92% das empresas tiveram diminuição do FAP. Qual é a leitura que devemos fazer disso? Que 92% das empresas tiveram menos trabalhadores com lesões e doenças ocupacionais em relação às empresas de seus ramos econômicos? Como inexplicavelmente o FAP só é conhecido por cada empresa não temos quaisquer elementos para avaliar. O FAP deveria ser público. O cidadão não tem direito de conhecer o FAP de cada empresa deste país? Por que não?
Como você avalia o conjunto de medidas adotadas pelas empresas?
Maria Maeno – Eu diria que não adianta realizar eventos em que aparentemente todos querem prevenir acidentes e doenças decorrentes das condições de trabalho. Não se tem políticas e ações para efetivamente mudar essas condições. Há insistência em conceitos que já deveriam ter sido varridos como a supervalorização dos equipamentos de proteção individual, os cursos de capacitação em segurança e saúde no trabalho, como se houvesse opções de se trabalhar de forma diferente da determinada pela empresa, a atribuição de responsabilidade ao trabalhador pela ocorrência de acidentes e doenças, o impedimento à organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Nos eventos há muito consenso, mas na vida real há muito pouca prática de avanços.
Fonte: Fetec com edição da Afubesp